Noites Brutais (2022)

Monstruosidade e violência de gênero

título original (ano)
Barbarian (2022)
país
EUA
gênero
Terror
duração
102 minutos
direção
Zach Cregger
elenco
Georgina Campbell, Bill Skarsgård, Justin Long, Matthew Patrick Davis, Richard Brake, Jaymes Butler, Kurt Braunohler, Kate Nichols
visto em
Regal Cinemas, Dublin, Califórnia (EUA)

Qual é o seu maior medo? Para a jovem Tess (Georgina Campbell), o pavor se encontra na possibilidade de ser agredida sexualmente. Quando ela chega à casa alugada na Internet, e descobre que existe outro rapaz ali dentro, com as mesmas datas de reserva, ela imediatamente teme a perspectiva do assédio. Para os homens, o receio é bem diferente: Keith (Bill Skarsgard) toma cuidado para não ser interpretado por Tess como um agressor, e AJ (Justin Long) considera absurda a acusação de estupro que ameaça encerrar a sua carreira. 

Como se percebe, a diferença entre gêneros e o prenúncio de uma violência de caráter sexual constituem dois pontos fundamentais neste projeto. Não é anódino que Tess trabalhe junto a uma documentarista em projetos de caráter progressista, e que AJ seja um produtor envolvido no piloto de uma série de televisão. Adiante, uma câmera de vídeo terá papel fundamental, além das imagens femininas que desfilarão pela tela. O diretor e roteirista Zach Cregger imagina um embate direto entre profissionais da indústria audiovisual, tornando Noites Brutais, ou Barbarian, no original, num longa-metragem da era #MeToo, onde o horror decorre da convivência forçada, e abusiva, entre homens e mulheres.

O roteiro se encaminha da civilização à barbárie. A narrativa se abre como um drama convencional, com uma alusão ao possível romance entre Tess e Keith, presos na casa alugada a ambos. O que fazer? Os proprietários não respondem, e não há hotéis disponíveis na região. Ela tranca a porta do quarto, verifica a carteira dele em segredo, recusa a bebida preparada pelo desconhecido. Ele pede desculpas diversas vezes, explicando se tratar de um jovem elegante e educado, que jamais teria uma conduta inapropriada com a hóspede. No entanto, na cabeça dos dois, o tema em comum diz respeito à violência sexual.

Ora, o espectador demora a perceber que a jornada se estrutura em três atos independentes, com protagonistas distintos e linguagens autônomas. Passada a primeira parte, o roteiro retoma com um novo protagonista, num corte abrupto. Somos lançados numa história separada, como se outro filme tivesse começado na mesma sessão. Com o ato III, algo semelhante ocorre: novamente, um desconhecido assume o controle da aventura, numa imagem multicolorida, em tela próxima do quadrado e fotografia com lentes grande-angulares, provocando uma deformação no ponto de vista.

O adversário se mostra mulher ou homem (ou talvez indefinido, agênero, fluido), sobrenatural ou natural, de acordo com a pessoa à sua frente. 

Como todas essas linhas se cruzam? Qual é a relação entre o encontro de Tess e Keith e as denúncias de estupro contra AJ, ou ainda a presença de um prestador de serviços nos anos 1980? Gradativamente, todas as peças começam a se encaixar. O quebra-cabeça será formado apenas nas cenas finais, quando instantes misteriosos do início se esclarecem, e Noites Brutais adquire um caráter coeso, além de um discurso unívoco. Revelar mais do que isso seria estragar a surpresa de um roteiro engenhoso, inesperado e, para a nossa surpresa, bastante coeso rumo à conclusão.

Apesar dos rumos atípicos, o projeto evita a surpresa externa, abrupta e espetacular, em estilo M. Night Shyamalan. Neste caso, as reviravoltas estão dispersas ao longo da trama, e cada guinada fornece tantas respostas a respeito das cenas anteriores quanto indagações para as cenas seguintes. O cineasta solicita um espectador ativo, disposto a participar deste jogo de adivinhações, entre o thriller de invasão doméstica e o horror sobrenatural.

Assim, foge aos clichês desgastados destes subgêneros: a “casa mal-assombrada” em questão está distante das mansões isoladas em florestas, cercadas por gelo seco. Pelo contrário, trata-se da casa restante de um bairro precarizado e abandonado em Detroit, Estados Unidos. A ideia de um vilão se dilui: pelo menos três pessoas e/ou criaturas assumem esta função, passando às vezes de vítimas a agressores, dependendo do ponto de vista. Esteticamente, Cregger abandona os jump scares, os vultos passando no fundo do corredor, as luzes que se queimam no momento de tensão e outros lugares-comuns.

O “monstro” constitui o ápice da fobia relacionado ao gênero e ao outro. Aos olhos do espectador, representa uma figura sobrenatural, com traços e habilidades impossíveis a um ser humano comum. Ora, no interior da trama, a Mãe é considerada uma mulher comum, triste, dotada de doenças psíquicas e físicas graves. A personagem feminina, com os seios expostos, é interpretada por um homem, numa voz meio grave, meio terna; entre gestos brutos e instantes de proteção. O adversário se mostra mulher ou homem (ou talvez indefinido, agênero, fluido), sobrenatural ou natural, de acordo com a pessoa à sua frente. 

Logo, o elemento que provoca repugnância ou desconfiança resulta numa projeção de nossas inseguranças. O espaço muda de casa a calabouço e labirinto; o bairro se converte num reduto perigosíssimo ou apenas vazio; a aparição da criatura alterna entre a violência paterna e o cuidado materno. Para os homens, é impossível aceitar o controle de uma figura feminina. Para as mulheres, é inaceitável se sujeitar à brutalidade de policiais ou colegas de trabalho arrogantes. Dependendo de sua perspectiva, identidade e experiência de vida, o horror pode começar em momentos distintos do filme, o que produz parte da sua fascinação.

As demais qualidades residem na potência dos símbolos que se reinventam e se desenvolvem. Tess, experiente em cinema, utiliza um espelho para refletir a luz da lâmpada quando se encontra num lugar escuro. O quarto com uma cama e um aparelho de vídeo significa “calabouço” para ela; mas será apenas um cômodo para colocar tralhas, na visão de Keith, ou uma possibilidade de aumentar a metragem do imóvel, para AJ. O abusador logo se encontrará comprimido sob um corpo indesejado, obviamente replicando a violência efetuada por ele. Há um caráter de rape and revenge (estupro e vingança) na história.

A subida na torre, em determinado momento, desperta um caráter fabular. Diversos contos de fada apresentam a ideia da princesa presa num local elevado, ou de uma criatura aprisionada neste espaço de visibilidade privilegiada sobre o caos lá embaixo. Aqui, as trevas subterrâneas da primeira metade se espelham na crueldade nas alturas, na segunda metade. Enquanto a casa de classe média esconde um universo gigantesco sob o tapete (numa metáfora dos crimes cometidos e ocultados entre quatro paredes), a torre de um não-castelo está distante da romantização ou idealização dos resgates de princesa por príncipes. 

O filme contribui a descobrir o talento de Georgina Campbell, ainda pouco conhecida em longas-metragens, numa personagem que ultrapassa o status da vítima, da heroína e da mártir. Bill Skarsgard ganha a chance de participar de um horror sem representar, desta vez, a figura do monstro, como havia feito em It: A Coisa e, em certa medida, na série Hemlock Grove. Já Justin Long abraça sem vaidades a figura do produtor abusivo e condescendente com a brutalidade masculina sistêmica. O prazer consiste em inserir, num cenário conhecido de horror, mulheres que jamais se comportam como as mocinhas clássicas desta linguagem (adeus, scream queens), junto a homens distantes tantoda coragem quanto da maldade caricatural.

Noites Brutais se encerra com uma imagem catártica que despertou aplausos e expressões de surpresa na sala de cinema. Aqui, a violência se impregna aos poucos, cena a cena, de maneira insidiosa e perversa, porque ocultando de propósito informações relevantes ao espectador. O cineasta nos convida a observar estes personagens de uma maneira, apenas para revelar adiante traços de caráter quase opostos. Até que ponto nos identificamos com estas figuras? Em que momento o jovem gentil se converte num perigo, e uma pessoa doente se torna um monstro? A elaboração complexa da moral, e sua materialização exagerada na forma do sobrenatural, fazem de Barbarian uma produção memorável.

Noites Brutais (2022)
8
Nota 8/10

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