Victim (2022)

O pobre contra o miserável

título original (ano)
Obeť (2022)
país
Eslováquia, República Tcheca, Alemanha
gênero
Drama
duração
91 minutos
direção
Michal Blaško
elenco
Vita Smachelyuk, Gleb Kuchuk, Igor Chmela, Viktor Zavadil, Inna Zhulina, Alena Mihulová, Veronika Weinhold, Gabriela Míčová, Claudia Dudová
visto em
Festival de Toronto 2022

Apesar da complexa trama de conflitos e subentendidos, o primeiro elemento que se destaca em Victim diz respeito à direção de fotografia. O filme se inicia nos bancos do fundo de um ônibus, impedido de seguir adiante devido a um acidente na estrada. A câmera então se desloca até a porta, acompanhando Irina (Vita Smachelyuk), que desce na via, pegar as malas no bagageiro e percorre uma infinidade de outros carros engavetados nas pistas, sem um corte sequer. A iluminação permanece impecável em todos estes momentos.

A luz será um motor de deslumbramento ao longo da sessão. O diretor de fotografia Adam Mach mergulha em locais de aparência inóspita para a construção de texturas, profundidades e variedades de luz: um hospital, um salão vazio com janela única, a tenda de uma manifestação, os corredores mal iluminados de um edifício para moradores de baixa renda. Em contrapartida, encontra uma maneira de oferecer imagens nítidas, cuidadosamente enquadradas, valorizando tanto a direção de arte quanto o trabalho dos atores. 

Felizmente, tamanho apuro estético se encontra a serviço de uma história de ambições igualmente profundas, evitando chamar atenção a si próprio. A premissa do espancamento de um adolescente ucraniano vivendo na República Tcheca desperta a óbvia simpatia pelo menino e pela mãe, lutando para conseguir a cidadania tcheca. Fosse um drama social de trinta anos atrás, talvez o roteiro pudesse se ater à lamentação do ocorrido, investigando as dores de cada membro envolvido, incluindo os pais das vítimas. O ponto de partida também seria, de certa maneira, o ponto de chegada.

No entanto, o texto oferece uma quantidade expressiva de reviravoltas ao longo de enxutos 91 minutos. O caso desperta uma onda de revolta contra ciganos, ainda mais pobres do que os protagonistas, e acusados de serem os responsáveis pelo caso. Descobre-se que a verdade se encontra à distância destas hipóteses, mas até então, a pequena comunidade ucraniana se volta contra os ciganos; a extrema-direita se ampara do caso para pregar o ódio às minorias; a prefeita utiliza a história para promover a garantia da lei e da ordem; e mesmo a mãe, ciente da mentira propagada na mídia, descobre ganhos pessoais que pode obter a partir desta visibilidade.

A noção de “vítima” se torna mais ampla do que o esperado. Vítimas seriam todos, em especial aqueles tragados por um sistema sobre o qual não possuem nenhum controle.

Como poderia se esperar de um drama denso, distante de ingenuidades óbvias, a noção de “vítima” se torna mais ampla do que o esperado. Vítimas seriam todos, em especial aqueles tragados por um sistema sobre o qual não possuem nenhum controle. O diretor Michal Blasko evita converter a fábula numa gigantesca tragédia — pelo contrário, oferece um simulacro de final feliz que não contenta nenhuma das partes, revelando profundas hipocrisias do mecanismo social. Noções de culpa, remorso e responsabilidade são exploradas com preciosas nuances.

Isso permite que Victim se afaste do formato “mãe coragem” sugerido pela sequência inicial. Irina aparenta ser uma mulher determinada a garantir os cuidados do filho sob qualquer circunstância, porém, a seguir, controla a narrativa relacionada ao ocorrido e diverge das intenções do garoto que, por sua vez, disputará o poder e o controle do caso. O espectador jamais é convidado a sentir pena desta mulher, nem raiva dela quando adota comportamentos controversos. Existe um distanciamento fundamental, em termos de discurso e de imagem (a revelação sobre a verdade ocorre a duas macas de distância), para que o público possa refletir por conta própria.

Vita Smachelyuk contribui à indeterminação do discurso através da composição ambígua, distante do maniqueísmo. A atriz foge aos extremos de fornecer uma mulher forte demais, determinada, ou então uma figura chorosa e piedosa. A vida continua durante a averiguação dos fatos: ela precisa lavar roupas, trabalhar como faxineira, cuidar da infiltração no apartamento. Quando quebram o vidro do carro, cola um plástico no buraco exposto e continua dirigindo. O imperativo do movimento, da necessidade de seguir em frente, abre a possibilidade de várias leituras quanto aos atos desta mulher em perpétuo movimento, conseguindo respirar somente na belíssima cena final.

A ciranda de poderes, a partir de uma agressão falsa, poderia ser interpretada enquanto potente crônica do mundo dominado pelas fake news, quando a veracidade de um fato se torna secundária em relação ao ganho simbólico obtido pelo mesmo. Em contrapartida, Blasko foge tanto à simples denúncia quanto ao sensacionalismo, preferindo fazer com que estes acontecimentos se desenvolvam de maneira orgânica, silenciosa, sem transformar o ritmo da narrativa nem romper com sua imperturbável naturalidade. Ninguém se espanta, implora, grita ou chora.

Neste aspecto se encontra um dos elementos mais perversos e interessantes do longa-metragem: a aparência de normalidade. O levante de extrema-direita se disfarça de uma manifestação aceitável: “São apenas pessoas descontentes com o estado das coisas”, sugere o organizador. A melhor amiga, ao descobrir a mentira, minimiza a opressão contra os ciganos acusados: “Eles iam acabar na prisão de qualquer maneira”. O oferecimento de um apartamento e de um cheque a Irina, por parte da prefeitura, converte-se em prêmio irônico pela saúde debilitada do filho, algo que não soluciona o caso do menino. Mesmo assim, todos continuam seus caminhos. 

Victim representa nossa indiferença generalizada ao outro, e a incapacidade de nos comovermos de fato com os problemas alheios. Nas entrelinhas, sem alarde, o drama representa a ciranda do individualismo crescente, coordenado pelas redes sociais, pelos smartphones, pela visão caricatural a respeito das diferenças. O outro que se vire, que lute pela própria justiça, porque problemas eu também tenho aos montes. Há um aspecto fascinante na relação de espectatorialidade desenvolvida com Irina: devemos nos identificar por ela? Torcer para ganhar a cidadania, para levar adiante a farsa?

Blasko se lança num recurso arriscado enquanto diretor, a partir do roteiro de Jakub Medvecký. Ele aposta numa narrativa que acompanha sua heroína o tempo inteiro, ainda que sem compreender ao certo seu raciocínio, nem qual decisão tomará a seguir. Estamos muito próximos dela, fisicamente, porém sem compreendê-la de fato. A partir de qual momento perdemos a adesão por esta mãe sofrida? Qual deslize ético e moral faz com que pensemos: “Agora ela passou dos limites”? Apela-se a um espectador ativo, participativo, provocado da primeira à última cena. A discussão deve reverberar na mente do público muito tempo depois do amargo final feliz.

Victim (2022)
9
Nota 9/10

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