Marina (Joana de Verona) é apaixonada pelas águas. Construiu sua carreira como atleta profissional de saltos ornamentais, e mesmo impossibilitada de praticar o esporte, seguiu nadando, vestida de sereia num aquário da cidade. Ela dorme em frente à televisão, onde assiste a programas sobre peixes. Quando a máquina de lavar transborda, uma pequena baleia de plástico inunda a cozinha. A mulher nem sequer percebe o alagamento considerável, talvez porque a proximidade com a água lhe seja tão natural.
Tinnitus não é um filme particularmente sutil em sua relação com simbologias ou com o corpo humano. Repleto de metáforas do início ao fim, ele as utiliza menos como formas de representação do que na função de elementos literais e explícitos. Assim, o marido faz sexo oral na esposa e diz que “seu gosto está diferente”, devido ao cloro. A heroína ouve zumbidos no ouvido, que se transformam em insetos no trabalho gráfico de abertura. Na hora do sexo, o marido geme especificamente no ouvido da esposa — o prazer se encontra no som.
Logo, torna-se curioso encontrar uma obra sobre culpa, sexo, corporeidade e perversidade embalada numa estética glacial e um tanto pomposa. Marina sofre com tinnitus, o barulho ininterrupto no ouvido. Isso abala sua confiança e saúde mental, provocando a aposentadoria precoce como atleta. No entanto, ao invés de uma leitura lúdica ou poética dos sintomas, eles serão tratados como caso clínico. Por isso, entram em cena grupos de apoio a pessoas com o mesmo problema, discussões sobre a dosagem ideal de medicamentos, os riscos de experimentar novas crises caso volte a saltar.
Assim, o zumbido resulta menos um meio para se compreender a psique complexa de uma mulher do que a finalidade do longa-metragem. O roteiro prioriza a condição de Marina aos efeitos da mesma na subjetividade da protagonista. Quando uma nova personagem apresenta sintomas semelhantes, o filme não terá nenhum problema em largá-la para estudar essa “transmissão” improvável de sintomas a outra esportista. Então ela reclama em voz alta do barulho, afirma ser insuportável. Quebra pedaços de vidro (uma cena copiada de A Professora de Piano, de Michael Haneke) para prejudicar a concorrente. Enlouquece, enfim, até ser esquecida pelo roteiro, que tampouco se preocupava com ela, mas com sua condição.
O filme a respeito do lado menos benigno dos seres humanos tem medo de se sujar, de tratar os símbolos com o devido asco, torpor, desejo, sedução.
Este mundo de competições é habitado por uma galeria de personagens amargurados. Os roteiristas preferem trabalhar o lado mais perverso de cada um, esquecendo os demais traços de personalidade que possam manifestar. O Dr. Santos (André Guerreiro Lopes), marido de Marina, se transforma num sujeito calculista, machista e dominador. A antiga companheira de Olimpíadas, Luísa (Indira Nascimento) tem um único traço explorado pelo texto: o ressentimento profundo após a perda da cobiçada medalha nos jogos. Assim, ela será violenta cena após cena (“Você ainda ouve vozes?”), sem outra forma de construção atenuante.
Esta característica se estende aos papéis menores. Teresa (Alli Willow) domina a heroína através da potência sexual e dos furtos de objetos, embora nunca possua carinho real pelas pessoas com quem se relaciona. Os médicos da pesquisa sobre tinnitus revelam empatia nula com a paciente. Outra colega de profissão médica observa Marina e dispara: “Já engravidaram?”. A treinadora (Thaia Perez) testemunha suas atletas se digladiarem e parece fomentar, tacitamente, a disputa entre elas. O universo se torna intrinsecamente autodestrutivo, com uma forma de impulsividade dificilmente justificada pelo tratamento estético.
Pelo contrário, o diretor Gregório Graziosi tenta atenuar a violência do universo aquático com uma possível leveza do universo nipônico. As referências ao Japão surgem de modo abrupto, e multiplicam-se inesperadamente na trama. De repente, há homens cobertos de vermelho fazendo performances nas ruas do bairro da Liberdade (apenas para as câmeras), pôsteres de Akira Kurosawa colados nas paredes, entrevistas com jornalistas japonesas (mesmo elas, bastante maldosas, como todos ao redor). A cultura nipônica jamais se conecta ao restante da trama, tendo como único e frágil elo a organização dos jogos olímpicos seguintes no Japão.
Neste contexto psicorrígido, o elenco faz o seu melhor, em especial, Joana de Verona. A atriz portuguesa trabalha com desenvoltura ímpar o sotaque brasileiro, e não demonstra muita vaidade diante das câmeras. As poucas cenas com as amigas, seja no bar ou nos vestiários do aquário, demonstram o potencial que uma fala mais corriqueira poderia trazer ao cenário de planos fixos, distúrbios crônicos e gozos interrompidos. A intérprete, sempre tensa e sem fôlego, seria plenamente capaz de oferecer alguma forma de leveza a este mundo-metrônomo.
Já os talentosos André Lopes Guerreiro e Indira Nascimento não recebem material suficiente para fugir à construção única de desprezo pela protagonista (todos os coadjuvantes existem em função dela, para ela, sendo desprovidos de objetivos e conflitos independentes). Mesmo Antônio Pitanga, um dos maiores intérpretes do cinema brasileiro, munido de um vigor impressionante, recebe a figura de um galerista opaco, de traços mal construídos, e cuja relação com o tinnitus e a cultura japonesa tampouco se aprofundam.
O desnível entre o controle e o descontrole se traduz em diálogos artificiais, que mal cabem na boca dos atores. Aqui, todos se comunicam com verbos na primeira pessoa do plural, mesmo em conversas corriqueiras. Em paralelo, expressam-se em voz alta, sozinhos, para dizer ao espectador o que pensam: “Nossa, tá tudo alagado!”, “Pelo menos não é o encanamento”. Depois, tornam-se explicativos, redundantes: “10 metros”, explica a treinadora à atleta profissional, em relação à altura da plataforma de salto. Ora, a esportista não o sabia? “[A sua jaqueta] estava no armário. Ia para o lixo, junto com a sua carreira”. Qual o motivo de tamanha provocação, para além da perversidade generalizada das interações?
Por fim, Tinnitus desperta o incômodo pelo tratamento do tom. Seus personagens parecem egressos de um suspense psicológico sombrio, ou talvez de um filme de terror, onde a predação se justificaria com mais facilidade. No entanto, Graziosi prefere o naturalismo do mundo em oposição ao tratamento médico do corpo. As cenas são longas, contemplativas, tão bem enquadradas quanto solenes em sua compostura. O filme a respeito do lado menos benigno dos seres humanos tem medo de se sujar, de tratar os símbolos com o devido asco, torpor, desejo, sedução. É como ler o boletim de ocorrência a respeito de um crime sangrento. A violência está presente, porém despersonalizada, assepsiada pelo linguajar, pelas normas de conduta, pelos procedimentos formais.