Torniquete (2025)

A metáfora sem referente

título original (ano)
Torniquete (2025)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
75 minutos
direção
Ana Catarina Lugarini
elenco
Marieta Severo, Sali Cimi, Renata Grazzini, Analú Arreguï
visto em
14º Olhar de Cinema (2025)

Três mulheres convivendo com traumas não-resolvidos. Como a adolescente Amanda (Sali Cimi) não realizou seu luto, ela ostenta uma enorme ferida no rosto, e declara não estar disposta a fechá-la. Já que a avó Lucinda (Marieta Severo) também possui pendências, ela posa longamente diante de uma parede com rachaduras — e a fissura atravessa o ponto exato de sua cabeça no enquadramento. Posto que a filha Sônia (Renata Grazzini) carrega suas próprias dores, ela se vê encarregada de retirar uma mancha de sangue no chão. Tal qual uma heroína shakespeariana, ela esfrega, esfrega, mas o vermelho continua lá, saltando aos olhos.

As metáforas não param. A vó corta a mão em duas cenas consecutivas — novamente a dor, o sangue, a ferida que não cicatriza. A garota manipula os pontos no rosto e ameaça retirá-los sozinha, para o desespero silencioso da mãe que testemunha a cena. Adiante, utiliza o sangue oriundo do corte para tingir os lábios em cor de batom. A ferida aberta ainda se equipara a uma boca, a uma vagina. No chão do chuveiro, a mãe se masturba, em referência à libido exacerbada pelo luto. Esta família que vive de vender botijões de gás (por isso, anda o tempo inteiro com camisetas “Lucinda do Gás”, é claro) ainda aprenderá a mexer com fogo. 

Ana Catarina Lugarini multiplica as menções a dor, luto, trauma e feminilidade. No entanto, jamais conhecemos de fato as personagens. Mesmo em termos de tons, Torniquete oscila bastante.

Em seu primeiro longa-metragem, a cineasta Ana Catarina Lugarini multiplica as menções a dor, luto, trauma e feminilidade. Trata-se de simbologias evidentemente válidas, exploradas com sucesso em inúmeros projetos anteriores a respeito de temas análogos. O recurso ao cinema de gênero, sobretudo na primeira e na última cenas, também soa bastante apropriado para lidar com angústias que as familiares não conseguem verbalizar. Tudo, a princípio, soa apropriado para um drama de personagens, nos quais a aflição de uma mulher se tornaria espelho da outra, até elas conseguirem, por identificação, expiar seus males coletivamente.

No entanto, jamais conhecemos de fato Lucinda, Amanda e Sônia. Sabemos que elas sofrem, porém, desconhecemos a origem do sofrimento. As metáforas optam por exteriorizar no corpo e na casa seus sentimentos, embora ignoremos os episódios aos quais elas fazem referência. Mesmo quando algum indício fatual aparenta chegar ao espectador, mero engano: trata-se de nova simbologia. A avó explica ao policial que já teve a casa invadida por ladrões 43 vezes, e num destes episódios, 15 homens teriam entrado na residência. “Mentira, exagero”, contesta a filha diante das autoridades. Não foi exatamente assim que aconteceu, é claro. Na cena de abertura, o trio é mostrado como figuras presas em cativeiro. Nos minutos seguintes percebe-se que, aparentemente, nunca houve sequestro no sentido literal do termo. A escolha do título se encaminha na mesma direção.

Que fique muito claro: ninguém está solicitando uma narrativa ex-pli-ca-di-nha, sem texturas, ambiguidades ou poesia. No entanto, estas iconografias apenas constituem significado uma vez associadas a um episódio contextualizado. Ronaldo Entler, pesquisador em análise da imagem, costuma dizer que toda metáfora deve conter a chave para suas interpretações possíveis. Ou seja, não encerrar a leitura numa única forma de compreensão, mas encaminhar o espectador para um direcionamento do leque semântico previsto pelo artista. Sem isso, a alusão não passaria, justamente, de uma alusão. Por isso, embora as escolhas sejam evidentes enquanto índice (a cicatriz em referência ao trauma psíquico), elas não necessariamente formam um significado. 

Mesmo em termos de tons, Torniquete oscila bastante. O trecho inicial dialoga com o terror tradicional, envolvendo captura feminina e discussões acaloradas entre as protagonistas para escaparem ao calvário. Num segundo momento, apela-se ao imaginário habitual dos doces dramas de amadurecimento, ou coming of age stories. A neta aprende com a avó a fumar e andar de motocicleta, enquanto ensina para esta como se anda de bicicleta. Embora distanciadas, elas formam um laço quase imediato. Chegado o terceiro ato, chega a vez do melodrama com choros intensos, expiação de sentimentos e catarse coletiva enquanto forma de purificação — algo que se conecta com o subgênero da narrativa religiosa de redenção. Mas do que elas estariam se redimindo mesmo?

O roteiro parte do instante em que filha e neta voltam à casa familiar, contra a vontade da avó-proprietária. O que exatamente houve no passado entre elas? Não caberia ao menos uma construção de indícios? Ainda que não tenha sido roubada 43 vezes, o que ocorreu nas violências anteriores, e por que Lucinda se recusa a partir? Que compreensão as mulheres mais velhas possuem da homossexualidade da filha-neta? É difícil acreditar que elas tenham obrigações com o mundo lá fora, seja no trabalho de venda de botijões, seja com qualquer amigo, amante, vizinho ou namorado(a).

Isso porque o universo ao redor, ao que tudo indica, inexiste. Elas são assaltadas por vozes inexistentes, e lidam com clientes quase sempre invisíveis. Até por isso, Torniquete sustenta este incômodo aspecto de alucinação coletiva, como se as mulheres tivessem perdido o contato com a realidade, e fabulassem violências imaginárias, em reflexo às psiques fragilizadas. Na ausência de qualquer comprovação dos fatos associados a tantas dores, o espectador não recebe elementos suficientes para preencher as lacunas. Neste caso, há mais lacunas do que texto neste exercício. Não é possível se dedicar somente às consequências, sem explorar as causas.

Por fim, nem mesmo as atuações se tornam fáceis de avaliar, posto que opacas, associadas a construções íntimas que as atrizes talvez tenham efetuados em seus processos de desenvolvimento de personagens, porém, que não estão visíveis em cena. Nota-se um sentimento vago de desconforto e inquietação, incapaz de se aprofundar nos dilemas específicos de cada uma. Quando a narrativa se encerra, de maneira bastante abrupta, deixa a impressão que seu trio atravessou a trama sem deixar marcas. Em míseros 75 minutos, nós mal começamos a destrinchar estas figuras herméticas, que se despedem do espectador antes mesmo de dizerem, afinal, a que vieram. 

Torniquete (2025)
4
Nota 4/10

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