Entre as inúmeras franquias voltadas ao público juvenil e familiar, poucas reproduzem a lógica infantil com a mesma intensidade de Transformers. Basta assistir aos cinco minutos iniciais de O Desperta das Feras para descobrir uma visão de mundo, uma capacidade lúdica e de criação que parecem emanar de duas crianças pequenas, brincando com seus bonecos no chão no quarto, imaginando vilões perversos e mocinhos virtuosos.
Os diálogos constituem ordens, ações, verbos. “Corra!”, “Pegue a chave”, “Proteja-a!”. Existe uma noção de comando e urgência, um perigo profundo desde o princípio, causado sabe-se lá por que, ou por quem. A abertura se dedica a reproduzir a seriedade sepulcral das crianças, capazes de acreditar nos maiores absurdos mediante a pura e ingênua vontade de crença. Agora o carro vira um robô. Agora o robô vira um avião. Agora a pantera também é robô. Este herói é forte e fala grosso, mas aí chega o vilão ainda maior e mais perigoso. A humanidade está em perigo. Vamos todos morrer! Socorro! “Não se eu puder evitar…”.
As sagas mais contemporâneas souberam evoluir (palavra curiosa, em se tratando de Transformers) sem perderem a identidade. Construiu-se um humor autorreferente e autoparódico nas produções recentes da Marvel. O aspecto sombrio das aventuras da DC se atenuou, permitiu a galhofa, as cores. O Homem-Aranha alçou voos artísticos e belíssimos com os traços de uma animação autoral. Os estúdios compreenderam a necessidade de responder às demandas das novas gerações (representatividade, diversidade, atenuação do peso machista e patriarcal), assim como dialogar com diferentes gêneros e idades. Afinal, para arcar com os gigantescos custos de produção, não é possível apelar somente ao segmento masculino e juvenil.
Transformers se recusa a abraçar um olhar progressista. Faz, no melhor dos casos, pequenas concessões de gosto e alcance questionável.
Transformers, em contrapartida, se recusa a abraçar um olhar progressista. Faz, no melhor dos casos, pequenas concessões de gosto e alcance questionável. O herói agora é latino, com um melhor amigo negro. A protagonista feminina deixa de ser uma beldade com os seios espremidos numa blusa justa, para se tornar uma garota negra de aparência comum, e dotada de conhecimentos científicos. Ora, essa pluralidade é abraçada unicamente enquanto fetiche: os marginais podem ser incorporados aos holofotes, contanto que na figura de malandros, pobres, propensos a ações criminosas.
A mulher salta de objeto de desejo à figura incômoda da negra-oráculo: ela bate o olho numa peça arqueológica e detecta, em segundos, a origem e o valor da obra. Menos do que conhecimento científico e capacidade de pesquisa, ela possui uma intuição mágica, mística, comum nos olhares estereotipados de personagens negros. Na hora da ação, adivinha? Ela estará em perigo novamente, precisando ser salva pelo homem heroico. Quanto mais a trama avança, menos seus conhecimentos possuem serventia numa trama avessa à ciência — a coragem dos homens e dos meninos continua prevalecendo. No final, a montagem sugere uma aproximação romântica entre o rapaz tímido que, enfim, conquistará a mulher enquanto recompensa pela jornada. Mesmo entre os robôs, a única androide feminina terá o corpo muito próximo de uma mulher de seios fartos, e, durante a batalha, terá seu papel reduzido diante da bravura dos robôs homens.
A narrativa mantém, desta maneira, a perspectiva masculina e conquistadora, tanto no sentido amoroso (a mocinha sempre precisando de resgate) quanto imperialista. Parte considerável desta caça ao tesouro em busca de uma chave capaz de abrir portais mágicos se passa no Peru, mas não um Peru qualquer: a parte mais selvagem, natural, pouco civilizada do país. Esqueçam as cidades e os indícios de uma contemporaneidade latino-americana. A nação se converte no fetiche dos trajes típicos, das lhamas, dos desfiles folclóricos. Nenhum peruano possui a mínima função narrativa, é claro. Os cenários limitam-se a um pano de fundo exótico para a exploração norte-americana.
No final, o malandro Noah Diaz (Anthony Ramos) descobre ser o único capaz de salvar o mundo dos ataques dos robôs. Essa missão do destino surge de maneira inexplicável e acessória: quando ele se vê sem dinheiro e emprego, o cosmos reage com o presente conveniente: “Você será a pessoa mais importante do planeta”. É compreensível o apelo desta mensagem de crescimento espontâneo e espetacular aos garotos atuais. Ao contrário do esforço, do aperfeiçoamento de conhecimentos e técnicas, você pode se tornar o soldado central de uma guerra interplanetária do dia para a noite, porque as forças do além o querem assim.
Existe uma facilidade impensável neste desenvolvimento, algo que retira a verossimilhança da narrativa. Os mocinhos e bandidos possuem a tecnologia mais avançada do mundo, porém são incapazes de detectar uma chave que se encontra em local visível a todos. “Mas eu tenho a resposta aqui”, responde de imediato a negra-oráculo, fornecendo indicações geográficas precisas através de rabiscos num caderninho. Robôs estão mortos e procuram suscitar grande apelo emocional, até se revelar que foram restaurados, encontrando-se prontos para a próxima aventura. Um portal aberto seria uma ação catastrófica e irreversível, até ser fechado com rapidez.
Há pressa em passar à ação seguinte, em seguir à próxima piada ou luta. Por isso, nenhum imbróglio pode durar o tempo necessário para justificar suas origens, suas consequências, para deixar resquícios ou marcas profundas na psicologia dos personagens. “A chave está aqui, no Peru”, afirma a voz apontando um mapa. “Vamos!”, respondem os robôs, de imediato. Não há duração, demora, esforço. Ignora-se a jornada enquanto processo, tanto de compreensão quanto de aprendizado. Trata-se da ação no sentido mais puro e irrefletido do termo: corre-se de um país ao outro, de uma planície a um sítio arqueológico, de uma garagem a um museu. Lança-se uma nova pista, e os participantes da gincana maluca interplanetária partem, animados.
A direção de Steven Caple Jr. demonstra dificuldade em solucionar questões simples de mise en scène, a principal delas sendo o dilema do “enquanto isso”. Quando você dispõe todos os seus personagens em cena ao mesmo tempo, efetuando ações diferentes, como garantir que eles estejam ocupados com seus problemas distintos? Enquanto eu filmo esta dupla à esquerda, o que estaria fazendo o trio à direita, fora do enquadramento? Aqui, as figuras apenas esperam. Precisando fugir desesperadamente, Noah e Elena (Dominique Fishback) observam os vilões lutarem, atônitos. Encarregados de correr num corredor para impedir um evento galáctico, preferem olhar para o céu e esperar.
A direção não possui a mínima ideia de como ocupá-los em paralelo, nem de como evoluir as ligações afetivas entre robôs e humanos. A certa altura, Optimus Primal chora as dores de ser um líder gentil com traumas afetivos. Elena se apieda pelo grande amigo, com quem nunca sequer tinha conversado até então. O irmão menor de Noah trava uma amizade profunda com Mirage, apesar de conhecê-lo uma vez apenas e depois, aparentemente, se comunicar à distância durante uma guerra. Nem os humanos, nem os robôs humanoides se desenvolvem de maneira palpável enquanto protagonistas. Eles possuem simples funções de suscitar medo, tristeza, alegria, apreensão.
Resta certa pena em relação aos bons atores presentes em frente às câmeras, precisando interagir com colegas digitais de complexidade nula, ou em versão infantiloide (Mirage, fazendo piadas escatológicas), ou ainda com heróis irredutíveis. No Brasil, ainda se teve a inexplicável ideia de exibir somente a versão dublada aos críticos de cinema. Apesar de se constatar o belo trabalho dos dubladores nacionais, torna-se impossível avaliar o trabalho tanto dos atores em live-action, quanto daqueles que fizeram as vozes originais, e se encontram ausentes neste resultado nacionalizado (Michelle Yeoh, Pete Davidson, Peter Dinklage, Ron Pearlman).
Sem dúvida, os fãs previamente conquistados pela marca Transformers devem se deliciar com o resultado. Alguns críticos, empolgados com a franquia, saírem literalmente emocionados da sessão, sinal de que esta forma de linguagem se comunica com seu público específico, e deve garantir os lucros esperados pelos produtores. Para os demais, resta uma enésima homenagem ao heroísmo individual e belicista, em detrimento da política institucional e da organização de sociedades. As instituições não servem para nada: quem pode salvar a catástrofe no Peru selvagem é apenas a coragem de um americano comum, eleito para resgatar a honra do planeta Terra, ao contrário das mulheres e latino-americanos que, passivos, esperam a valentia e o poder de fogo do império. Não há nada muito moderno nesta visão de mundo.