Um Broto Legal (2022) é movido por uma nobre iniciativa: valorizar o percurso de Celly Campello e do irmão Tony Campello, designados pelo roteiro como percursores do rock no Brasil. Assim, o discurso aposta numa jornada de predestinação: a mãe é radicalmente contrária ao investimento do filho na música; o namorado se opõe ao sucesso da garota; os diretores de gravadoras discordam do potencial da jovem; os donos de baile repudiam esse estilo de música onde as pessoas rebolam demais. O mundo se posiciona contra os protagonistas.
Ora, os percalços constituem mera ferramenta para reforçar o sucesso de ambos. Trata-se de uma cinebiografia de viés meritocrático: estima-se que os dois artistas ganharam um filme porque mereceram tal atenção, porque foram dignos desta honraria. Por isso, sabemos que Celly e Tony conquistarão o sucesso. O fato de partirem de um contexto de adversidades apenas torna a vitória no ramo musical mais recompensadora, à dupla e ao espectador. Acredita-se que triunfaram porque tentaram muito.
Aí começam os problemas do longa-metragem. A obra se dedica inteiramente aos heróis: nenhum personagem coadjuvante possui vida própria, ou ambições particulares, além de Celly e Tony. Os donos da gravadora parecem ter apenas a garota de Taubaté sob contrato. O namorado da cantora a espera numa quadra de basquete sozinho. A ascensão previsível, pois anunciada desde o princípio, supõe um de dois caminhos: a recompensa por esforço (eles tentaram tanto que conseguiram), ou a recompensa por talento (os dotes vocais eram tão evidentes que conseguiram).
Entretanto, nenhum destes elementos se concretiza em cena. Quando a jornada começa, ambos são músicos formados. Como aprenderam inglês a ponto de se passarem por norte-americanos? De onde veio o conhecimento vocal, os dotes ao piano? De que maneira desenvolveram os conhecimentos musicais, inclusive das tendências atuais na Europa e na América do Norte, dentro de uma família sem apreço pela música? Sempre sonharam com a fama? O dinheiro? Os namorados e namoradas? Mistério.
A biografia musical retira da arte o seu esforço, o seu desenvolvimento, seu caráter profissional. Celly e Tony são artistas que não ensaiam, não aprendem, não buscam referência, não se esforçam.
Um Broto Legal apresenta a música como milagre. Eles desejam gravar certa canção, então — corte — a música está tocando no rádio. Muda-se a frequência do rádio, e vejam só, todas as estações repetem o hit do momento. Em seguida, no entanto, executivos alegam que as músicas de Celly têm repercussão fraca, o que talvez motive uma ruptura de contrato. Ora, nunca vimos o desempenho destas gravações — positivo ou negativo. Os diálogos nos alertam sobre os sucessos, os fracassos, as descobertas. “Tem uma multidão te esperando ali na frente”, alerta o namorado. De fato, um grupo de dez pessoas brotou em frente ao portão.
Nunca se descobre, ao longo da jornada, que relação os artistas tiveram com Estúpido Cupido, Um Broto Legal e Banho de Lua. De repente, cantam. Gostaram da letra, do ritmo? Adequaram à sua voz? O que representava, pessoalmente, a canção para cada um deles? Silêncio. O roteiro parece trabalhar com uma checklist de ações obrigatórias: o sucesso, a recusa dos diretores, a insistência, a conquista. Check. A progressão de um ponto ao outro, e o impacto emocional destas transformações ficam a cargo da imaginação do público.
Assim, a biografia musical retira da arte o seu esforço, o seu desenvolvimento, seu caráter profissional. Celly e Tony são artistas que não ensaiam, não aprendem, não buscam referência, não se esforçam. A música lhes aparece num toque de mágica da montagem. Por isso, quando o garoto demonstra medo de cantar inglês, o temor soa despropositado: ele não vinha cantando em inglês, fluentemente, até então? A insistência da irmã e ganhar uma nova canção parece abrupta demais: ela havia interpretado somente as músicas dadas a ela, de presente.
Esta simplificação do fazer artístico, em tom de fábula ou faz-de-conta, se encontra com uma estética que poderia ser descrita como ingênua. O diretor Luiz Alberto Pereira opta por recursos simples de mise en scène, próximos da ludicidade infantil. As sequências são desprovidas de dinâmica interna: durante a briga familiar, todos discutem sentados num sofá. A mãe fica de pé, imóvel. A montagem corta entre diversos enquadramentos, que revelam a mesma interação. No painel de executivos observando a gravação musical de Celly, eles posam para na fotografia nos moldes de um time de futebol. As pessoas falam, falam, mas não se movem, até porque não têm objetivos: cada cena representa um tableau estático.
Quando há muitos personagens em cena, ou diante de locações de dimensão pequena (ou ambos), a câmera simplesmente se espreme num canto, em plongée, tentando abarcar o máximo de pessoas possível, no ângulo próximo ao de uma câmera de segurança. Há pouquíssimas apresentações musicais, seja por empecilhos de produção, seja pela dificuldade de encaixar estas dinâmicas ruidosas no dispositivo teatral. Enquanto isso, os atores são condicionados a fazer caretas para sublinhar suas reações, algo típico de um programa infantil. E o que dizer do sotaque italiano novelesco de Felipe Folgosi?
Soma-se ao conjunto a construção literalmente bege das cores, além do aspecto comportado do filme e dos personagens. O tal rock’n’roll nunca foi tão recatado e do lar. Mesmo a decisão controversa de Celly Campello, de abandonar a carreira musical em pleno auge para se dedicar ao namorado ciumento, é apresentada como uma concessão valorosa, uma prova de amor. A posição da mulher mereceria um questionamento mais amplo do que a romantização da desistência.
Um Broto Legal se conclui em obra de aparência tão humilde quanto pouco polida. Qualquer produtor(a) de mãos firmes conseguiria apontar o caráter engessado da direção, e o teor inofensivo da construção de personagens. Voluntariamente ou não, o resultado se assemelha a uma celebração nostálgica destes bons meninos que lutaram pelo rock, apenas para abrir mão de sua conquista quando a sociedade assim o solicitou. Para a jornada de dois indivíduos que historicamente afrontaram o sistema, o resultado se mostra domesticado até demais.