Um Corpo para Habitar (2024)

Sagrado e profano

título original (ano)
A Body To Live In (2024)
país
EUA
linguagem
Documentário
duração
97 minutos
direção
Angelo Madsen Minax
com
Fakir Musafar, Cleo Dubois, Ron Athey, Annie Sprinkle, Midori, Yossie Silverman, Ganymede, Paul King, Rig & Sam
visto em
14º Olhar de Cinema (2025)

As imagens provocam espanto. Por que um homem escolheria colocar gigantescas argolas no mamilo, comprimir o corpo com espartilhos, e inserir ganchos nas costas, possibilitando içá-lo com cordas? O que leva alguém a obter prazer, e também certa paz de espírito, através das práticas de modificação corporal? Como se atravessa a linha nada tênue entre automutilação, satanismo, body art e vivências espirituais de êxtase coletivo? Neste documentário, o diretor Angelo Madsen Minax investiga os diferentes significados do corpo para várias culturas, além de nossa capacidade de explorar a corporeidade enquanto work in progress.

Para isso, ele toma como personagem principal Roland Loomis, mais conhecido como Fakir Musafar. Em seus cinquenta anos de atividade, foi considerado excêntrico, provocador, usurpador de práticas ancestrais alheias, pornógrafo, ou ícone das espiritualidades livres. Foi uma figura queer casada com uma mulher; mantinha trabalhos comuns de escritório e participava de “festas do piercing” à noite; concedia entrevistas à grande mídia, ao passo que preferia a reclusão junto ao pequeno grupo de alunos e amigos. Trata-se de uma persona ideal para confrontar algumas contradições dos Estados Unidos, e do moralismo à americana, atravessadas por este corpo e esta subjetividade.

Um Corpo para Habitar possui esta raríssima habilidade de combinar o sagrado e profano, o religioso e o erótico.

“Para os espectadores mais sensíveis, sei que os primeiros cinco ou seis minutos podem ser difíceis, mas depois passa, fiquem tranquilos”. Ao apresentar seu documentário ao público brasileiro, no Olhar de Cinema, o cineasta demonstrou plena consciência da perturbação que tais imagens podem causar. Entretanto, testemunhamos somente imagens de corpos perfurados com consentimento e, mais do que isso, provocando certa forma de prazer ou alívio aos participantes. “Mas por que alguém faria isso?”, repete a mulher num programa de auditório, com evidente asco impresso no rosto. Neste momento, ela não demonstra qualquer curiosidade ou interesse pelas práticas do entrevistado: seu julgamento moral desfavorável já está pronto.

Um Corpo para Habitar possui esta raríssima habilidade de combinar o sagrado e profano, o religioso e o erótico. A linha conectando rituais espirituais e sexuais sempre foi tênue, e a pesquisa de Loomis contribui a derrubar estas fronteiras. A cada nova manipulação da pele e dos músculos, o protagonista reforça o senso de pertencimento à comunidade que o acolhe. Encontra indivíduos que pensem de maneira semelhante, igualmente adeptos a uma sexualidade plural, e a uma manifestação da libido não necessariamente associado ao sexo — reforçando a ideia de que o erotismo vai muito além do ato sexual em si, conforme atesta a esposa de Fakir, quando recorda a excitação de ter os seios retorcidos por uma barra de ferro.

Teria sido fácil olhar para este universo com a perspectiva excêntrica de quem observa um espetáculo bizarro, um freak show. Felizmente, o diretor possui evidente carinho e interesse pela visão de mundo de seus personagens. Ele nunca os transforma em animais de circo, pelo contrário, demonstra o carinho e a ternura palpáveis em cada uma destas práticas transcendentais. Ninguém duvida, ao final da sessão, do afeto de Loomis pela esposa, e vice-versa, em paralelo ao sentimento paterno do homem em relação aos alunos da escola de piercing, a quem ensina o valor xamânico desta prática. O discurso inclusive cogita algumas hipóteses capazes de embasar os gostos do protagonista, associadas à figura ausente do pai e a uma “justificativa para gostar de sexo”.

Para acompanhar práticas tão dissonantes, o autor busca uma estética à altura. Ele projeta fotografias antigas do artista sobre fundos abstratos, compostos por borrões de pintura, sangue coagulado (quando se menciona o HIV/AIDS) e mesmo sobreposições digitais, explorando cores exageradas em tons pastéis. Este último recurso inclusive remete às experiências de vídeo típicas dos anos 1980 — em Sem Sol, por exemplo, Chris Marker efetuava procedimentos semelhantes no intuito de descaracterizar o real e nos obrigar a enxergá-lo de outra maneira. Talvez por isso, Madsen nos ofereça a história de Loomis não enquanto exceção à regra, ou rebeldia pueril, mas como forma alternativa (nem melhor, nem pior) de estar no mundo.

Enquanto isso, a montagem fragmenta bastante os pontos de vista, alternando entre entrevistas, imagens de Loomis sobre si mesmo, depoimentos da esposa e eventuais participações de pessoas próximas à dupla. O estilo picotado nunca atinge uma linguagem pop, tampouco experimental, mas torna ágil e multifacetada a discussão a partir de perspectivas múltiplas. É fato que alguns personagens citados não ganham nenhum aprofundamento, soando quase descartáveis à narrativa (caso de Midori e Ganymede), enquanto outros dominam a experiência. Mas, no fundo, apesar tantas fugas à norma, a obra ainda sustenta uma espinha linear, relativamente convencional, partindo da infância do personagem e terminando em sua morte.

Por fim, Um Corpo para Habitar foge à armadilha sensacionalista do prazer em chocar. Apresenta o trabalho de um indivíduo que nem mesmo considerava seu trabalho como arte, até ser tratado desta maneira por terceiros. O filme reforça a ideia da criação enquanto algo íntimo, quase uma vocação religiosa — algo que une, uma vez mais, a figura de Loomis àquela do “escolhido” das escrituras cristãs. Se alguns documentários gostam descrever artistas na condição de profissionais, cujo trabalho demanda conhecimento, esforço e regras rigorosas, Madsen prefere a imagem de uma vocação, uma necessidade pessoal, impulsionando o desenvolvimento de uma prática própria. Fakir seria um autodidata, transformando-se no criador e na criatura — ele seria, ao mesmo tempo, artista e obra.

O diretor ainda toma a precaução de contextualizar as criações, explicando que o conceito de “apropriação cultural” não era discutido durante a maturidade do protagonista. Mesmo assim, preserva na montagem as contestações dos povos originários acerca de sua utilização da Dança do Sol. O filme também insinua, pelas frestas, que Fakir seria egocêntrico e teria uma personalidade difícil. Ao final, trata-se de não idealizar este homem, somente enxergar as complexas discussões que o atravessam. Ao invés de uma biografia tradicional e laudatória, o protagonista ganha um documentário que se apropria de seu caso particular na qualidade de ponto de partida para uma reflexão muito mais complexa a respeito das conexões entre corpo e identidade. Nesta capacidade de ampliar o discurso residem as notórias qualidades de Um Corpo para Habitar.

Um Corpo para Habitar (2024)
8
Nota 8/10

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