Um Dia Daqueles (2025)

Rir, mas sem perder a ternura

título original (ano)
One of Them Days (2025)
país
EUA
gênero
Comédia
duração
97 minutos
direção
Lawrence Lamont
elenco
Keke Palmer, SZA, Joshua David Neal, Patrick Cage, Lil Rel Howery, Maude Apatow, Katt Williams, Janelle James, Keyla Monterroso Mejia, Dwayne Perkins, Rizi Timane, Aziza Scott
visto em
Cinemas

Um Dia Daqueles elege como personagens principais os trabalhadores de baixíssima renda dos Estados Unidos. São a garçonete que conta com gorjetas, a pintora que jamais vendeu um quadro, o namorado desempregado e aproveitador, o “profeta” duas ruas, considerado pelas pessoas como louco. Eles sonham com a estabilidade financeira através de um pequeno negócio, embora precisem lidar com problemas mais urgentes, como acertar as contas com o proprietário do apartamento onde vivem. É difícil fazer planos a longo prazo quando o namorado de Alyssa (SZA) gasta todo o dinheiro do aluguel dela e da amiga Dreux (Keke Palmer), deixando ambas à beira do despejo.

O roteiro esclarece que ela são talentosas e capazes, ainda que atrapalhadas em sua organização da vida doméstica. Ao invés de ridicularizá-las — algo que diversas comédias brasileiras fariam com as classes populares —, o roteiro de Syreeta Singleton sublinha que Dreux é uma excelente garçonete, capaz de gerenciar a lanchonete sozinha e abrir sua própria filial, enquanto Alyssa possui talento (ainda não reconhecido) em seus quadros de vertente pop. Exclui-se, desta maneira, a meritocracia enquanto horizonte de reconhecimento: ambas ainda enfrentam grande dificuldade de se sustentarem apesar dos esforços consideráveis.

Assim, estabelece-se na tela uma contagem regressiva das horas restantes para encontrarem o dinheiro do aluguel. A expulsão de um vizinho serve para nos alertar que a ameaça é, de fato, seríssima. Este é o mote utilizado pelo diretor Lawrence Lamont e pela produtora Issa Rae para imaginarem, ao longo de um único dia, um sem-número de trapalhadas, o que inclui cobras no quarto, venda de sangue, corpos eletrocutados e enfrentamento de mafiosos. Na chave da gradação, cuida-se para que os absurdos sejam cada vez maiores e mais graves, aproximando a jornada de um pesadelo. 

Existe um posicionamento político fundamental em criar uma obra a respeito de negritudes (hétero e queer, correta e malandra, antiquada e progressista) na qual ninguém é vítima, nem herói.

É possível apontar que, no terço final, as trapalhadas sejam insanas até demais, abandonando qualquer conexão com a verossimilhança — embora cada um trace seu limite subjetivo de onde a fantasia se torna excessivamente fantasiosa. Mesmo assim, os obstáculos servem a testar a amizade da dupla: quanto mais provações elas superarem juntas, mais forte será o laço que as coloca na mesma casa, aturando os deslizes uma da outra. Interessa o fato de esta ser essencialmente uma história de amizades, na qual a atração por rapazes musculosos fica em segundo plano. Quando necessário, os moços são sacrificados em nome da amiga. Bros before hos — ou algo equivalente para o gênero feminino.

No que diz respeito aos afetos, Um Dia Daqueles flerta de maneira cândida com a homoafetividade. Dreux se diz lésbica ao passar por um corredor repleto de homens assediadores e, adiante, as amigas declaram sua amizade “até que a morte nos separe”. Elas se admiram, se acham bonitas, e incentivam-se num misto de ternura e empatia. Deste modo, transitam de maneira orgânica entre a amizade funcional (duas pessoas que simplesmente dividiriam o apartamento) e algo que se aproximaria de uma paixão. Quem diria que, num filme avesso a sutilezas em termos de acontecimentos, haveria tamanho espaço para o carinho.

Talvez esta seja a receita para inserir tamanhos desmandos dentro de uma jornada minimamente plausível: as viradas rocambolescas se tornam aceitáveis contanto que acreditemos nos conflitos originais de Alyssa e Dreux. A dificuldade de pagar o aluguel, o fato de se sentirem enganadas pelos homens, a preocupação com o cabelo, com a vizinhança, etc., são elementos de fácil identificação. Esta comédia funciona tão bem por derivar de uma crônica aguçada das classes populares, disposta a rir das pessoas ao redor de Dreux e Alyssa, mas jamais das duas. A entrevista de emprego da primeira, e a conversa com o namorado da segunda, serão momentos dramáticos, privilegiando o realismo, em oposição à insanidade das brigas com gangues. Lamont sabe quando pesar a mão, e quando retirar o pé do acelerador.

Além disso, efetua uma bela comédia de pessoas negras, para pessoas negras. Projetos do gênero são importantíssimos. Os criadores do longa-metragem certamente entendem o papel dos símbolos (o tênis Nike), da comunidade inteiramente formada por pessoas negras, das piadas com bolas de aplique substituindo as bolas de feno do faroeste. Ao invés de vender um humor a respeito da negritude para o público que se imagina branco (As Branquelas, por exemplo), os criadores não partem do pressuposto habitual que todo espectador seja branco, até prova em contrário.

Existe um posicionamento político fundamental em criar uma obra a respeito de negritudes (hétero e queer, correta e malandra, antiquada e progressista) na qual ninguém é vítima, nem herói. Os personagens se encontram em pé de igualdade, tanto em renda quanto em poder. A única figura branca será alvo de piadas a respeito de cotas (do mesmo modo que muitas comédias brancas incluem um único negro como representante). Esta figura é devidamente satirizada, embora não vilanizada. Existe uma preocupação humanista no olhar, que talvez passe despercebida devido ao tom histriônico do humor.

As atrizes também contribuem consideravelmente à empreitada. Keke Palmer é excelente em corpo, fala, entonações. Ela oferece inúmeras possibilidades de jogo à cantora SZA que, mesmo sem ser uma atriz profissional, não incomoda em sua composição mais crua. Outro acerto da direção reside em exagerar os coadjuvantes para que as protagonistas não precisem fazê-lo. Trata-se de pessoas “comuns” num mundo absurdo, e não o contrário. Posto que o humor nasce da assimetria de tons e intenções, nota-se o respeito quando o ponto de vista de situa junto à dupla central. Por trás de confusões mais ou menos elaboradas (do pênis gigantesco do namorado às decisões controversas envolvendo dinheiro e incêndios), existe uma bela comédia, que se importa de verdade com suas personagens.

Um Dia Daqueles (2025)
7
Nota 7/10

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