Uma Vida para Dois (1953)

Os homens (se) desejam

título original (ano)
Uma Vida para Dois (1953)
país
Brasil
Gênero
Drama, Suspense, Romance
duração
89 minutos
direção
Armando de Miranda, Sérgio Brito
elenco
Orlando Vilar, Liana Duval, Luigi Picchi, Jaime Barcellos, Sérgio Brito, Lima Duarte
visto em
19º CineOP — Mostra de Cinema de Ouro Preto

Uma Vida para Dois trabalha o fascinante tema dos duplos. O cinema (e também a literatura, e a ficção científica de modo geral) adora perturbar nossa certeza de sermos singulares, especiais. E se houvesse, pela Terra, outra pessoa idêntica a nós em aparência, mas ainda melhor do que nós nesta tarefa peculiar de ser nós mesmos? O medo de ser substituído costuma levar a uma guerra fratricida. A sina dos duplos é eliminar sua cópia, ou ser eliminado por ela. 

Este filme brasileiro passa longe de uma ficção científica. Constitui um drama, com generosas doses de suspense e, ocasionalmente, de comédia. No entanto, acompanha a proximidade trágica entre Marco (Orlando Villar) e Mario (Luigi Picchi), melhores amigos que dividem uma sina: são artistas fracassados. O primeiro, “mais escritor do que músico”, e o segundo, “mais músico do que escritor”. Vivem juntos, enfrentam a penúria financeira lado a lado. Vestem-se com as mesmas roupas e, obviamente, se apaixonam pela mesma mulher, Marina (Liana Duval).

O triângulo amoroso constitui o elemento de maior interesse do longa-metragem, quando visto pelos olhos do século XXI. Isso porque a jovem se encanta com ambos (afinal, constituem metades de um único indivíduo), porém, evita ceder a qualquer um dos dois. Passam a viver a três, temendo os olhares da sociedade. Ela se despe por trás de um tecido translúcido (que permite enxergar as formas de seu corpo, é claro), enquanto os homens compartilham uma cama de casal.

A homossexualidade reprimida retorna de maneira triunfal nesta trama, parte homofóbica, parte tolerante aos desejos ocultos do protagonista.

Os diretores Armando de Miranda e Sérgio Brito trabalham de maneira precisa, ainda que sutil, a tensão homoerótica comum nas narrativas sobre duplos. Ao perceber que seu clone pode conquistar a mulher de seus sonhos, o sujeito procura se fazer ainda mais viril, mais potente e masculino. Na competição do indivíduo consigo mesmo, ele presta uma verdadeira homenagem à potência e à sexualidade alheia. A disputa costuma funcionar como maneira de retirar sujeitos apáticos de sua vida morna, empoderando-os graças à libido espelhada em si próprio. 

Pois Marco e Mario (a falta de acento será importante na trama) passarão a competir, substituindo-se ao colega, tramando nas costas do melhor amigo. Eles nunca manifestaram interesse por mulheres antes, mas a presença de Marina fará com que, por exemplo, acordem fazendo carinho no ombro do outro, pensando se tratar da garota. Tanto o humor quanto a pitada de homofobia decorrem precisamente do deboche pela possível intimidade entre dois homens.

É claro que apenas um deles poderá ficar com o objeto de desejo da dupla, nesta sociedade conservadora dos anos 1950. Curiosamente, o roteiro nunca constrói uma perseguição moralista ao trio, que poderia ter estendido a convivência poliamorosa por mais tempo. Entretanto, os preconceitos internalizados os levam a uma espécie de duelo lançado à mocinha: “Escolha: ele ou eu”. Caso ocorresse nos dias atuais, esses Jules e Jim poderiam perfeitamente viver uma história afetuosa com a mulher — e um com o outro. A liberdade de corpos e desejos invalidaria parte considerável dos conflitos nos longas-metragens do século passado.

Entretanto, Miranda e Brito multiplicam os referenciais de suspense, que dominam a segunda metade da trama. Os cineastas demonstram evidente gosto pelo cinema de Hitchcock, com quem estabelecem inúmeras conexões na chave do plágio/homenagem. Um Corpo que Cai, Festim Diabólico e Pacto Sinistro são apenas alguns dos títulos do britânico que vêm à mente conforme Marco e Mario passam a rivalizar. Cartas deturpadas, cadáveres convenientes e mudanças de identidade surgem de maneira nada convincente.

Aliás, quanto mais escancara o desejo de surpreender o espectador e revelar o lado sombrio do ser humano, menos Uma Vida para Dois se prova bem-sucedido. Ele transborda de ambição, mas também incomoda pelo aspecto desajeitado de acomodar as reviravoltas que se atropelam, sobretudo no desfecho. Os autores apostam numa obra cujas sensações (medo, surpresa, alívio, angústia) são priorizadas em relação ao raciocínio lógico. O mergulho no cinema de gênero equivale, neste caso, à decisão autocondescendente de introduzir na narrativa qualquer elemento capaz de gerar tensão.

Logo, Uma Vida para Dois deve ser tornar conhecido menos por suas qualidades do que pela coragem, e pela crença ingênua no funcionamento dos tiques e truques propostos. Em chave extrafílmica, torna-se “o filme perdido” de Mario Civelli, aquele recuperado muitas décadas depois, em cópia 16mm, que ainda passará por processo de restauração. Tornou-se um caso raro, o filme impossível de assistir, e mais misterioso por seu desaparecimento do que pelo conflito fratricida entre Mario e Marco. 

Atualmente, pode e deve ser interpretado igualmente com ajuda das ferramentas do cinema queer. A ideia de dois homens que vivem juntos, já em idade adulta consolidada, sentindo que precisam matar uma parte inconveniente de sua identidade para terem sucesso na sociedade reacionária, funciona enquanto metáfora da homofobia internalizada do sujeito dividido em dois. Ora, nosso anti-herói descobre tarde demais que matou a parte errada — ou, então, que tal parte nunca pode ser morta. A homossexualidade reprimida retorna de maneira triunfal nesta trama, parte homofóbica, parte tolerante aos desejos ocultos do protagonista.

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