Vermelho Bruto (2022)

Estratégias de não-comunicação

título original (ano)
Vermelho Bruto (2022)
país
Brasil
formato
Experimental, Documentário
duração
205 minutos
direção
Amanda Devulsky
Com
Alessa, Eunice, Fabiana e Jo
visto em
26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

No palco do cinema, a diretora Amanda Devulsky apresentava seu projeto. Afirmou se tratar do encontro cinematográfico entre quatro mulheres que se tornaram mães na adolescência durante a redemocratização do Brasil e, em 2018, se depararam com a eleição de Jair Bolsonaro. O ponto de vista é interessante e singular: o que estas quatro mulheres e mães pensariam da democracia, constantemente ameaçada no país? Como suas lutas pessoais se cruzariam com lutas maiores, para preservar as conquistas progressistas?

No entanto, pouco desse furor político e sociológico se encontra em Vermelho Bruto. Talvez parte do vigor esteja presente, diluído, pulverizado em doses homeopáticas, e transformado em coadjuvante diante das experiências estéticas da direção. O personagem principal aqui não são as mulheres, nem a política brasileira, e sim as escolhas autorais e intrusivas de mise en scène, que nunca param de chamar atenção a si mesmas. Os temas sociais consistem na estrutura sólida diante da qual se elabora um amplo exercício formal.

Vários elementos permitem pensar numa hierarquia opressora entre forma e conteúdo, onde os registros brigam entre si, sem necessariamente se ajudarem na arte de narrar uma história e propor um discurso. Em primeiro lugar, a escolha determinante de não revelar o rosto destas mulheres — nem de qualquer outro ser humano. As quatro protagonistas se traduzem em vozes fantasmáticas desprovidas de nome, idade ou percurso autônomo, visto que a montagem entrecruza as narrativas sem que o espectador descubra onde acaba uma confissão e se inicia a seguinte.

Logo, elas se pronunciam em uníssono, apagando possíveis contradições em suas falas, mas sublinhando problemas estruturais: o machismo dos companheiros que as abandonaram ou sugeriram o aborto, a pressão religiosa de pais e familiares, os julgamentos morais por terem engravidado cedo, o preconceito no mercado de trabalho. Tornam-se uma só, todas as mulheres, e também mulher nenhuma. Teria sido importante saber se são negras, brancas, indígenas; em qual bairro cresceram, etc. Novamente, a autora foge à sociologia para privilegiar um feminino essencialista, ontológico.

Este seria um fator determinante na leitura de Vermelho Bruto: a escolha de não-comunicação, de criar inúmeros filtros, barreiras, dificuldades e desvios no caminho entre o espectador e o conteúdo audiovisual.

Em segundo lugar, o longa-metragem é quase inteiramente composto de fragmentos produzidos, de maneira amadora, pelas próprias mulheres. O cinema brasileiro já utilizou muito bem a apropriação de imagens de terceiros (vale pensar em Doméstica, 2012, ou Pacific, 2009), mas aqui, os criadores evitam explorar o olhar não-profissional destas cidadãs enquanto estudo estético. A questão “como elas enxergam o mundo por si próprias” está ausente no procedimento, para o qual os vídeos consistem em mera argila para a cineasta esculpir sua obra própria. Os recursos produzem uma estranha despersonalização destas figuras que deveriam retratar.

Em terceiro lugar — e em consequência do ponto anterior —, a dissociação constante entre som e imagem afasta a conexão imediata com o presente e dificulta a identificação do espectador com trechos tão familiares aos brasileiros, caso da redemocratização e a ascensão da extrema-direita. Enquanto as protagonistas relatam suas vidas, enxergamos planos noturnos de Brasília, fragmentos abstratos que poderiam ser batentes de portas ou janelas, texturas que remetem a flores ou mofo. Devulsky mergulha num distanciamento radical, um processo profundo de desconexão entre a representação e o mundo representado.

Em quarto lugar, Vermelho Bruto consiste numa obra experimental de 205 minutos de duração. Muitas produções, inclusive as nacionais, já exploraram durações semelhantes, com ritmo surpreendentemente dinâmico, ágil, repleto de cenas e narrativas que justificavam tal extensão — caso dos magistrais Luz nos Trópicos (2020), de Paula Gaitán, e Martírio (2016), de Vincent Carelli. Aqui, em contrapartida, é difícil encontrar motivos que sustentem a opção por 3h35 de filme para além desta vontade de distinção, de constituir uma iniciativa excepcional, única, rara.

A cada fala das mulheres, surgem longos instantes de silêncio com interstícios abstratos da cidade, costurando registros que se assemelham, até a possível repetição das formas e procedimentos. O aspecto mais perturbador da espectatorialidade reside na percepção renovada de que, passados 30 minutos, o espectador já descobriu o estilo e o discurso propostos, e que pelas três horas seguintes, nada alterará a narrativa lisérgica e ironicamente linear. As falas serão diferentes, porém a obra aparenta transmitir tudo o que tem a dizer (e a dar a ver) em pouco tempo, reproduzindo-se em looping, num labirinto que poderia ter 45 minutos, 3h35 ou 7h de duração, sem grande impacto em termos de comunicação dos temas propostos.

Este seria um fator determinante na leitura de Vermelho Bruto: a escolha de não-comunicação, de criar inúmeros filtros, barreiras, dificuldades e desvios no caminho entre o espectador e o conteúdo audiovisual. Devulsky complica uma relação de montagem e narrativa que poderia ser muito mais simples e direta. Ela fragmenta falas que talvez fossem potentes em sua captação inicial, em seu ritmo de origem. Seria esta a raiz do cinema experimental? Uma estratégia de ressignificar nosso olhar apressado da contemporaneidade pelo registro da lentidão, do esforço físico e mental, do apelo ao espectador ativo, incitado a ressignificar o que vê?

Ora, o filme parece existir apesar do espectador, ao invés de para ele. A direção nos desafia, nos confronta e provoca, cabendo determinar se tal enfrentamento seria positivo, ou mera vaidade e ímpeto onipotente de criadores satisfeitos demais com o controle de que dispõem. Na sala de cinema da Mostra de Tiradentes, esta foi, de longe, a sessão mais vazia, onde alguns espectadores cochilavam, outros entravam e saíam repetidas vezes. No entanto, estamos distantes das exibições pop de Andy Warhol, para quem a dilatação temporal era concebida precisamente para que o público pudesse sair, voltar, e “não perder nada” da narrativa. A obra brasileira está longe desta provocação conceitual bem-humorada.

Ao final, este não será um projeto sobre as mulheres, sobre a política brasileira, sobre fluxos de democracia ameaçada. Nem mesmo a divertida cena da mãe explicando a eleição de Bolsonaro se destaca, posto que constitui um grão de vigor em meio ao mar etéreo e crepuscular de imagens-fluxo. Este será “o filme de 3h35”, aquele “sem rostos”. “Você vai encarar este filme? Tem coragem de ficar até o final? Tem certeza? Vai aguentar até o fim?”, perguntavam as vozes no hall do cinema, empolgadas em descobrir as criaturas estranhas que se disporiam a tal sessão. A experiência se tornou retórica, quase uma brincadeira, um desafio físico e pessoal. Partindo do retrato sociopolítico, este cinema se converte num pitoresco parque de atrações.

Vermelho Bruto (2022)
4
Nota 4/10

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