Leva algum tempo até o espectador conhecer de fato a protagonista deste drama. O diretor Pedro Costa inicia sua jornada num passeio pelos cenários paupérrimos desta periferia portuguesa, repleta de casinhas improvisadas em vielas estreitas. Muito antes da primeira palavra, o espectador terá conhecido o universo labiríntico por onde passam raros personagens, à noite, contornando postes, escadas circulares e lajes que brotam sabe-se lá de onde. Esta geografia da pobreza beira o surrealismo, como nos quadros de Escher.
Apesar de abraçarem uma situação realista, envolvendo personagens que interpretam suas histórias verídicas, Costa e o diretor de fotografia, Leonardo Simões, aplicam o estilo particular de iluminação que o diretor vem desenvolvendo em seus trabalhos. Trata-se de cenas escuríssimas, embora bem iluminadas onde interessa ao olhar: os personagens, parte do corpo ou dos olhos se destacam ao lado de um sombrio profundo. O “efeito íris” do cinema mudo se transforma numa aplicação in loco, durante a filmagem.
Além disso, as casas contorcidas, angulares e distorcidas relembram os cenários fantásticos das obras do Expressionismo alemão. É curioso que, na intenção de obter distanciamento em relação ao real, o diretor recorra a uma forma de linguagem tão próxima da fantasia, dos cenários construídos para a ficção. Paira uma atmosfera de sonho (ou pesadelo) nesta concentração opressora de cenas noturnas e internas. Mesmo durante o dia, Vitalina e os demais homens-zumbis do vilarejo permanecem dentro de casas sem luz elétrica. Somente feixes de luz natural, que se intrometem nos cômodos empobrecidos, iluminam os rostos e corpos. A primeira cena diurna e externa acontecerá no terço final da trama.
Este longa-metragem consegue extrair do mundo aquilo que teria de absurdo, descolado da normalidade. Assim, cria estranhamento no olhar à trajetória real de Vitalina Varela, mulher cabo-verdiana que passou 25 anos esperando pela prometida passagem de avião para se juntar ao marido em Portugal. No entanto, a oportunidade nunca chegou. Ela o visita, ironicamente, depois da morte deste — a heroína é convidada a reencenar seu próprio trauma e desilusão. O gesto poderia soar perverso nas mãos de diretores vaidosos, mas aqui, recobre-se de um pudor e um respeito sepulcrais.
Isso significa que a imagem jamais invade a privacidade de Vitalina. Quando esta se levanta para buscar algum objeto no cômodo ao lado, a câmera permanece fixa onde estava, aguardando o retorno dela. O procedimento traduz as maiores forças tanto da ficção quanto do documentário: da primeira, extrai o controle, a noção de cenários e interações que jamais fogem ao alcance dos enquadramentos. Do segundo, extrai a impressão de espontaneidade, capaz de suavizar a rigidez implacável de um drama silencioso a respeito da impossibilidade do luto.
Costuma-se dividir os diretores entre aqueles que ajustam sua câmera ao mundo e aqueles cujo mundo é obrigado a se ajustar à câmera. Ora, esta abordagem atinge um inesperado meio-termo.
Assim, o autor desenvolve uma obra profundamente estilizada, ainda que distante da vaidade tão comum aos cineastas egocêntricos. Costuma-se dividir os diretores entre aqueles que ajustam sua câmera ao mundo, com suas imperfeições e imprevistos, e aqueles cujo mundo é obrigado a se ajustar à câmera, num gesto de controle. Ora, esta abordagem atinge um inesperado meio-termo: Costa abraça a trajetória real da mulher de 55 anos, perambulando por casas reais. No entanto, por meio da linguagem, cria estranhamento, tensão, desconforto e uma profunda sensação de melancolia.
Ele não precisa pedir à atriz que chore para demonstrar seu pesar: as luzes, cenários e a duração dos planos se encarregam de representar a mistura de tristeza, rancor e afeto carregados pela protagonista, abandonada pelo homem que ama. É impressionante o domínio de linguagem da equipe ao criar planos complexos dentro de estruturas fixas, longas e de pouca dinâmica interna (ou seja, sem atores movendo-se para todos os lados). A exemplo de Tsai Ming-Liang e Apichatpong Weerasethakul, o português domina o potencial dos enquadramentos fixos, do espaço fora de quadro e das durações dos planos.
A emoção surge por contraste: num cenário tão silencioso, as vozes de homens bêbados nas ruas provocam um ruído considerável. Nestes cômodos escuros, um pequeno feixe de luz revela objetos e partes da locação que nem sequer teríamos imaginado. Sempre existe algo novo a absorver nesta trajetória que se produz aos poucos, sem uma explicação inicial, nem um senso de inevitabilidade. As cenas são apartadas de uma dinâmica de causa e consequência: elas poderiam se montar em outra ordem, mas preservam, em ritmo e tom, um aspecto etéreo, lânguido.
Os personagens falam raramente, e na maioria dos casos, para si mesmos. Some a função do diálogo enquanto motor de conflito, ou de explicação ao espectador: cabe ao público juntar os pontos necessários e compreender os objetivos desta triste personagem ao visitar Portugal. Vitalina tece ruminações para si mesma, em voz baixa, numa forma de meditação ou pensamento interno. Até o padre, importante figura masculina de manutenção da ordem, discursa a si próprio, de olhos baixos. Os personagens confessam seus sentimentos, suas dores, ao vazio dos cômodos e das casas. Já o espectador presencia estes momentos numa mistura de cúmplice silencioso e intruso de um espaço ao qual não pertence.
Embora a viagem constitua um acerto de contas simbólico, propenso às lágrimas e ao expurgo emocional (“Bem aventurados os que choram”, afirma o padre), Vitalina praticamente não chora, e o espectador tampouco será convidado a se identificar com a viajante pelo prisma dos sentimentos. A trama ocorre num momento posterior aos choques: o corpo já foi sepultado, e a esposa teve muitos anos para chorar o abandono em sua terra natal. Resta a impressão de cansaço e torpor, diante da evidência da morte. O que fazer, agora? A quem reclamar?
Costa filma o não-movimento por excelência, ou seja, a incapacidade de mudar, de se mover. Em se tratando de um filme a respeito de uma viagem entre continentes, com direito a visitas por casas e igrejas, atinge-se um curioso road movie da imobilidade, onde o marido amado e odiado será representado pela ausência. Fotos, símbolos e aspectos documentais deste importante personagem são retirados de foco: o espectador imaginará a aparência, as motivações e a índole do pedreiro que vivia em condições de miséria na terra distante, acumulando as sinas de estrangeiro e de trabalhador explorado.
“Aqui não há nada para ti”, repetem os diálogos, inúmeras vezes. Triste constatação para a mulher que sonhava com um Portugal de conciliações. “É saborosa, aos olhos do Senhor, a morte de seus servos”, comenta o padre, numa mistura de afirmação e enigma. Vitalina Varela sustenta, do início ao fim, a aparência de mistério, afinal, acumulamos tantos esclarecimentos quanto dúvidas ao longo do percurso. O diretor jamais explica sua heroína, deixando que o rosto expressivo da protagonista transmita todos os questionamentos e emoções necessários. Nunca enxergamos a narrativa pelos olhos dela: Vitalina será vista de fora, de longe, com uma porção de respeito, e outra de temor.
Este cinema magistral, que privilegia perguntas ao invés de respostas, representa um gesto político e humano fundamental. A forte intervenção de luz e a aproximação do pesadelo não serve a atenuar as dificuldades, nem a reforçá-las no sentido de denunciar a miséria e a injustiça contra esta mulher. Costa interfere ao máximo no espaço e no tempo (matérias-primas absolutas da mise en scène) enquanto intervém o mínimo no trabalho emocional de sua atriz, e nos rumos narrativos. O roteiro de poucas ações e reviravoltas se choca com a estética repleta de significados profundos e ostensivos. Aqui, quem chora são as luzes e as casas vazias, em oposição aos pobres personagens, e aos personagens pobres.