Você me Queima (2024)

Como cinema para literatura

título original (ano)
Tu me Abrásas (2024)
país
Argentina, Espanha
linguagem
Experimental
duração
64 minutos
direção
Matías Piñeiro
elenco
Gabi Saidón, María Villar, Maria Inês Gonçalves, Agustina Muñoz, Ana Cris Barragán, Michelle Yoon, Katarina Burin
visto em
48ª Mostra de São Paulo (2024)

Entre as inúmeras possibilidades de referenciar a literatura no cinema, Você me Queima escolhe uma das mais criativas e, também, mais literais. Partindo dos fragmentos de poemas de Safo, o diretor Matías Piñeiro filma páginas de livros, folhas de papel sendo viradas, anotações escritas à mão. Ele inicia seu projeto com cartelas impressas, filmadas pela câmera, e termina com um pincel fazendo anotações sobre o nome dos artistas mencionados nos letreiros finais.

O longa-metragem transmite um afeto palpável pelo livro enquanto objeto físico, para além da própria escrita. Alguns cineastas encenariam as conversas de Safo e Britomártis de modo referencial e cronológico (estratégia de Ensaio Sobre a Cegueira, por exemplo), já outros inundariam a banda sonora de narrações em off, com leituras de trechos extensos da peça literária (vertente seguida por A Paixão Segundo G.H.). O autor opta por um caminho disperso, experimental, brincando com a literatura ao invés de utilizá-la enquanto referencial solene, digno de um respeito sepulcral.

Logo, para uma escrita em fragmentos, um filme em fragmentos. O argentino promove uma série de rimas visuais, tão curiosas quanto inesperadas, marcadas pela completa dissociação entre som e imagem. A partir da pequena frase Tu me abrásas (cujo som, em espanhol, vale tanto para “Você me abraça” quanto “Você me queima”), ele escolhe uma imagem correspondente a cada palavra. Quando escutamos “tu”, vemos um prédio. “Me” se cola ao dedo apertando a campainha. “Abrásas” equivale à torneira aberta na pia. Os códigos se repetem, até que o espectador compreenda, nesta sequência e nas demais, que a simples aparição de uma pia com a torneira aberta significa “queimar”, na linguagem particular do criador.

Piñeiro estuda a adaptação cinematográfica enquanto forma de tradução. O que resta da linguagem e da literatura, quando são modificadas pela interpretação em outro idioma?

Talvez esta forma de comunicação se associe a um código morse do audiovisual; um jogo da memória em forma lexical. Esta maleabilidade se justifica, afinal, as distintas tentativas de agenciar sons e imagens encontram-se cerne de qualquer filme. Que melhor maneira de pensar no sentido da escrita e no sentido da imagem do que sublinhar palavra-a-palavra, imagem-a-imagem, com cuidado e atenção, até os significados mudarem, se expandirem, se associarem a novos estímulos? Piñeiro retira os termos de suas casas originais, por assim dizer, para melhor compreendermos seu contexto via estranhamento.

Isso implica em estudar a adaptação cinematográfica enquanto forma de tradução, ou ainda, de transformação. Assim como a linguagem salta de maneira orgânica e frenética entre o inglês, o espanhol e o grego; a compreensão pula da palavra, no sentido original de 25 séculos atrás, para sua assimilação contemporânea. A montagem vai além, ao buscar inúmeras traduções do mesmo poema, expondo as diferentes escolhas de palavras. Enxergamos uma tradução específica no livro filmado, enquanto a leitura deste trecho, em voz off, oferece uma escolhe distinta de termos.

Afinal, o que resta da linguagem e da literatura, quando são modificadas a tal ponto pela interpretação em outro idioma? Quando se alterna de uma tradução à outra, e do jogo entre o grego antigo ao espanhol contemporâneo? E quando os sentidos são moldados à escultura e à pintura (ambas presentes no filme)? A obra discute, assim, sistemas de representação, fazendo do deslocamento entre registros um meio e uma finalidade. Pouco importa qual versão é melhor, ou mais adequada. O cineasta se interessa pela maleabilidade e a perpétua modificação de um texto escrito tanto tempo atrás. A arte segue viva, móvel e mutante.

Ao espectador médio, este jogo pode soar hermético e cerebral demais. Passados 30 minutos, mal vemos um único rosto humano, nem conseguimos determinar ao certo o protagonista desta iniciativa — seria Safo? Britomártis? A literatura enquanto tal? A língua e a linguagem? As duas atrizes centrais interpretariam versões da mesma figura, a exemplo dos poemas traduzidos em outras línguas? O que dizer de tantas repetições, cíclicas, dando a impressão de um estudo detalhado, ou uma forma de transe estético?

Em paralelo, impressiona a maneira como Piñeiro consegue ser perfeitamente coeso com a sua proposta, sem recorrer a termos em desuso, a teóricos, nem referências acadêmicas. Pelo contrário, ele busca na natureza os referenciais cotidianos dos elementos citados no texto: as maçãs na árvore, a abelha desenhada na calçada, a caixa d’água em cima da casa, o ovo sobre a mesa. As frases estudadas e remanejadas pela montagem são igualmente simples: “Para mim, nem o mel, nem a abelha”, “Te garanto que alguém se lembrará de nós”. Há um aspecto bastante acessível nos trechos selecionados.

No máximo, o longa-metragem cita Ulisses e Penélope, Calypso e outras referências clássicas, porém, sem exigir do espectador conhecimento profundo da Odisséia, Ilíada e da mitologia grega em geral. A beleza e fluidez desta escolha experimental consiste em fornecer associações livres que o público pode abraçar, ou não, conforme seu repertório e sua sensibilidade. Caso não incorpore tal simbologia, continuará navegando perfeitamente pela atmosfera hipnótica de sons e imagens. Inúmeras maneiras e níveis de compreensão estão disponíveis a esta obra que nunca encerra seu sentido. 

Pelo contrário, Você me Queima serve como faísca, pequena provocação para despertar um interesse posterior ao próprio filme, seja na procura pelas obras de Safo, seja no próprio questionamento da adaptação enquanto tradução. Piñeiro foge à armadilha de tentar explicar Safo, ou resumi-la, para dialogar com ela, a partir dela, preservando as lacunas inevitáveis de um trabalho artístico parcialmente perdido em frações de pergaminho. O cineasta pensa junto à escritora e junto ao público, numa horizontalidade e generosidade ímpares.

Você me Queima (2024)
8
Nota 8/10

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