Imagine uma sociedade onde, ao invés de os filhos adolescentes darem satisfação aos pais, estes últimos precisassem explicar sua conduta aos garotos e garotas. Agora seriam os adultos a prestarem conta do cigarro fumado às escondidas, do flerte com o colega de trabalho, da frase maldosa confessada a um amigo. Isso porque os filhos, neste contexto, sabem de tudo, observam tudo, escutam tudo. What Marielle Knows propõe esta fábula de inversão dos poderes, a partir de um mecanismo tão simples quanto eficaz de realismo fantástico.
No centro da trama está Marielle (Laeni Geiseler), estudante que começa a trama levando um forte tapa na cara, num plano extremamente próximo, em câmera lenta. O gesto pode parecer agressivo, porém, tem suas vantagens: após a briga com uma colega de escola, a jovem desenvolve o poder inesperado de testemunhar exatamente o que pai e mãe fazem durante o dia. Ela não compreende de onde surge a telepatia, nem como controlá-la, ou interrompê-la — e o filme tampouco se preocupa em lançar hipóteses pseudocientíficas para o golpe de mágica. Precisamos apenas aceitar que esta, agora, é a realidade da garota: ela possui a capacidade de vigiar os pais.
O humor decorre, naturalmente, do incômodo (para os personagens e para o espectador) em testemunhar acontecimentos que não se esperaria da relação entre pais e filhos. Para evitar a perversão da trama, Marielle revela de imediato suas novas habilidades, provando-as para além de qualquer suspeita. Assim, evita tirar proveito deste recurso para chantagem, obtenção de dinheiro e favores similares. A menina prefere devolver a Julia (Julia Jentsch) e Tobias (Felix Kramer) o reflexo de suas ações, para que reflitam acerca do comportamento quando estão distantes um do outro. Ela se converte num espelho, um diário aberto. O pretexto que talvez servisse a um delicioso terror contenta-se em explorar os códigos da comédia de costumes.
Após a briga com uma colega de escola, a jovem desenvolve o poder inesperado de testemunhar exatamente o que pai e mãe fazem durante o dia. Uma comédia amarga, de fundo melancólico.
Pelo menos, o diretor Frédéric Hambalek o faz com precisão e malícia. O trabalho de diálogos e de interações entre Julia e Tobias se torna progressivamente acanhado, artificial, temeroso. Enquanto a mãe tenta atenuar o peso de suas ações imorais através da sinceridade (ela anuncia com antecedência os planos de trair o marido com o colega de trabalho), o pai começa a agir corajosamente, de maneira deliberada, para ganhar a admiração da filha (ele finalmente se impõe face ao colega opressor da agência de publicidade). Ninguém se porta de maneira orgânica ou espontânea, sabendo que olhos atentos os observam o tempo inteiro.
A mensagem aponta para a hipocrisia das relações sociais e os pequenos arranjos com a lei e a moral, praticados pelos adultos para suportarem a vida em sociedade. O discurso sugere que todo mundo mente, oculta e deturpa a verdade, de modo que a súbita exigência de transparência soa incompatível com a espontaneidade ou a concretização dos desejos. Como podem fazer sexo, sabendo que estão sendo observados? Ou xingar alguém, dando um mau exemplo à garota? O superpoder atribuído à menina (fruto de um ato de violência, não podemos esquecer) se converte numa maldição aos três. Ninguém está particularmente contente de invadir, contra a sua vontade, a privacidade alheia.
Neste aspecto, What Marielle Knows se converte numa comédia amarga, de fundo melancólico. Ao posicionar este espelho insistente no rosto dos pais, força-os a enxergarem o fato que o casamento anda em crise, que a rotina os aborrece, e que simplesmente não estão felizes. A magia da adolescente constitui uma espécie de terapia de choque para os familiares, que não estão preparados para lidar com as revelações e descobertas. A família patriarcal burguesa, em perfeito funcionamento, mostra-se frágil de uma maneira que jamais imaginaria.
Esteticamente, o projeto adota uma cartilha simples, porém funcional. Além dos planos e contraplanos mecânicos, em modo satirizado (quando a estudante repete, para um e para outro, o que disseram ao longo do dia), a montagem se contenta em intercalar grandes cenas de conflito com painéis coloridos de Marielle, em câmera lenta, sob a luz do sol (vide imagem de destaque acima). O recurso retorna três, quatro, cinco vezes. Nunca se desenvolve de fato, entretanto, serve a proporcionar certo descanso aos sentidos após a intensidade das trocas. Ainda emprega uma curiosa câmera na mão, deslocando-se longamente até chegar ao casal, para despertar a impressão de que sejam, de fato, observados.
Os atores se deliciam com as composições, no sentido de construírem personagens sem vaidade, nem a preocupação em extraírem momentos grandiosos. A comédia nasce dos gestos minúsculos, de uma expressão que contradiz a fala, ou do jogo de olhares entre pai e mãe, testando-se para ver qual dos dois mente mais, ou mente primeiro. A premissa basicamente lança uma faísca de discórdia na “família perfeita” para testemunhá-la, então, desabar. Existe algo possivelmente perverso neste gesto, mas também socialmente interessado finalmente observar, com certo distanciamento, alguns gestos percebidos como “naturais” nos pressupostos da cis-heteronormatividade.
Para uma trajetória com tantas piadas e instantes de humor físico (os pais cogitam estapear a filha para interromperem o fluxo telepático), surpreende a maneira cândida, e bastante comovente, do desfecho imaginado pelo cineasta. De maneira microscópica, ele imagina um modo simbólico para os pais explorarem as habilidades da filha a seu favor. Assim, passado o turbilhão de receios e embates, encontra gestos genuínos de afetos num núcleo que parecia definitivamente rompido. Trata-se de uma solução otimista, talvez ingênua, porém crente na capacidade de entendimento por causa das diferenças, e não apesar delas.
No final, What Marielle Knows pode ser lido como uma fábula in extremis da passagem à fase adulta, quando descobrimos a crueldade e infelicidade de nossos pais. Marielle, agora adulta, terá sempre um olhar diferente, moroso, conforme atestam as cenas finais. “Ela perdeu o brilho nos olhos”, comenta a avó. Este presente triste, adquirido após um tapa, converte-se num bruto ritual de crescimento para a garota, marcada eternamente por tudo aquilo que viu e ouviu.