What Marielle Knows (2025)

Como educar seus pais

título original (ano)
Was Marielle Weiß (2025)
país
Alemanha
gênero
Comédia, Drama
duração
86 minutos
direção
Frédéric Hambalek
elenco
Julia Jentsch, Felix Kramer, Laeni Geiseler, Mehmet Ateşçi, Moritz Treuenfels
visto em
75º Festival de Berlim (2025)

Imagine uma sociedade onde, ao invés de os filhos adolescentes darem satisfação aos pais, estes últimos precisassem explicar sua conduta aos garotos e garotas. Agora seriam os adultos a prestarem conta do cigarro fumado às escondidas, do flerte com o colega de trabalho, da frase maldosa confessada a um amigo. Isso porque os filhos, neste contexto, sabem de tudo, observam tudo, escutam tudo. What Marielle Knows propõe esta fábula de inversão dos poderes, a partir de um mecanismo tão simples quanto eficaz de realismo fantástico.

No centro da trama está Marielle (Laeni Geiseler), estudante que começa a trama levando um forte tapa na cara, num plano extremamente próximo, em câmera lenta. O gesto pode parecer agressivo, porém, tem suas vantagens: após a briga com uma colega de escola, a jovem desenvolve o poder inesperado de testemunhar exatamente o que pai e mãe fazem durante o dia. Ela não compreende de onde surge a telepatia, nem como controlá-la, ou interrompê-la — e o filme tampouco se preocupa em lançar hipóteses pseudocientíficas para o golpe de mágica. Precisamos apenas aceitar que esta, agora, é a realidade da garota: ela possui a capacidade de vigiar os pais.

O humor decorre, naturalmente, do incômodo (para os personagens e para o espectador) em testemunhar acontecimentos que não se esperaria da relação entre pais e filhos. Para evitar a perversão da trama, Marielle revela de imediato suas novas habilidades, provando-as para além de qualquer suspeita. Assim, evita tirar proveito deste recurso para chantagem, obtenção de dinheiro e favores similares. A menina prefere devolver a Julia (Julia Jentsch) e Tobias (Felix Kramer) o reflexo de suas ações, para que reflitam acerca do comportamento quando estão distantes um do outro. Ela se converte num espelho, um diário aberto. O pretexto que talvez servisse a um delicioso terror contenta-se em explorar os códigos da comédia de costumes.

Após a briga com uma colega de escola, a jovem desenvolve o poder inesperado de testemunhar exatamente o que pai e mãe fazem durante o dia. Uma comédia amarga, de fundo melancólico.

Pelo menos, o diretor Frédéric Hambalek o faz com precisão e malícia. O trabalho de diálogos e de interações entre Julia e Tobias se torna progressivamente acanhado, artificial, temeroso. Enquanto a mãe tenta atenuar o peso de suas ações imorais através da sinceridade (ela anuncia com antecedência os planos de trair o marido com o colega de trabalho), o pai começa a agir corajosamente, de maneira deliberada, para ganhar a admiração da filha (ele finalmente se impõe face ao colega opressor da agência de publicidade). Ninguém se porta de maneira orgânica ou espontânea, sabendo que olhos atentos os observam o tempo inteiro.

A mensagem aponta para a hipocrisia das relações sociais e os pequenos arranjos com a lei e a moral, praticados pelos adultos para suportarem a vida em sociedade. O discurso sugere que todo mundo mente, oculta e deturpa a verdade, de modo que a súbita exigência de transparência soa incompatível com a espontaneidade ou a concretização dos desejos. Como podem fazer sexo, sabendo que estão sendo observados? Ou xingar alguém, dando um mau exemplo à garota? O superpoder atribuído à menina (fruto de um ato de violência, não podemos esquecer) se converte numa maldição aos três. Ninguém está particularmente contente de invadir, contra a sua vontade, a privacidade alheia.

Neste aspecto, What Marielle Knows se converte numa comédia amarga, de fundo melancólico. Ao posicionar este espelho insistente no rosto dos pais, força-os a enxergarem o fato que o casamento anda em crise, que a rotina os aborrece, e que simplesmente não estão felizes. A magia da adolescente constitui uma espécie de terapia de choque para os familiares, que não estão preparados para lidar com as revelações e descobertas. A família patriarcal burguesa, em perfeito funcionamento, mostra-se frágil de uma maneira que jamais imaginaria.

Esteticamente, o projeto adota uma cartilha simples, porém funcional. Além dos planos e contraplanos mecânicos, em modo satirizado (quando a estudante repete, para um e para outro, o que disseram ao longo do dia), a montagem se contenta em intercalar grandes cenas de conflito com painéis coloridos de Marielle, em câmera lenta, sob a luz do sol (vide imagem de destaque acima). O recurso retorna três, quatro, cinco vezes. Nunca se desenvolve de fato, entretanto, serve a proporcionar certo descanso aos sentidos após a intensidade das trocas. Ainda emprega uma curiosa câmera na mão, deslocando-se longamente até chegar ao casal, para despertar a impressão de que sejam, de fato, observados.

Os atores se deliciam com as composições, no sentido de construírem personagens sem vaidade, nem a preocupação em extraírem momentos grandiosos. A comédia nasce dos gestos minúsculos, de uma expressão que contradiz a fala, ou do jogo de olhares entre pai e mãe, testando-se para ver qual dos dois mente mais, ou mente primeiro. A premissa basicamente lança uma faísca de discórdia na “família perfeita” para testemunhá-la, então, desabar. Existe algo possivelmente perverso neste gesto, mas também socialmente interessado finalmente observar, com certo distanciamento, alguns gestos percebidos como “naturais” nos pressupostos da cis-heteronormatividade. 

Para uma trajetória com tantas piadas e instantes de humor físico (os pais cogitam estapear a filha para interromperem o fluxo telepático), surpreende a maneira cândida, e bastante comovente, do desfecho imaginado pelo cineasta. De maneira microscópica, ele imagina um modo simbólico para os pais explorarem as habilidades da filha a seu favor. Assim, passado o turbilhão de receios e embates, encontra gestos genuínos de afetos num núcleo que parecia definitivamente rompido. Trata-se de uma solução otimista, talvez ingênua, porém crente na capacidade de entendimento por causa das diferenças, e não apesar delas.

No final, What Marielle Knows pode ser lido como uma fábula in extremis da passagem à fase adulta, quando descobrimos a crueldade e infelicidade de nossos pais. Marielle, agora adulta, terá sempre um olhar diferente, moroso, conforme atestam as cenas finais. “Ela perdeu o brilho nos olhos”, comenta a avó. Este presente triste, adquirido após um tapa, converte-se num bruto ritual de crescimento para a garota, marcada eternamente por tudo aquilo que viu e ouviu.

What Marielle Knows (2025)
7
Nota 7/10

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