Em Chamas (2023)

Todos os homens

título original (ano)
In Flames (2023)
país
Paquistão, Canadá
gênero
Terror
duração
98 minutos
direção
Zarrar Kahn
elenco
Ramesha Nawal, Omar Javaid, Bakhtawar Mazhar, Adnan Shah Tipu, Mohammad Ali Hashmi, Jibran Khan
visto em
Mostra de São Paulo 2023

Há algo estranho ocorrendo com as mulheres deste longa-metragem. Desde as primeiras cenas, elas parecem ser observadas à distância, perseguidas. Percebem rapazes parados numa multidão, encarando-as. O foco se encontra em Mariam (Ramesha Nawal), jovem politizada que pretende seguir os estudos de medicina. Embora não confronte abertamente as regras do sistema, ela explora as brechas que lhe cabem para dirigir um carro sozinha (algo proibido às mulheres no Paquistão), ou andar pelas ruas sem a companhia de um homem.

Aos olhos da sociedade, a heroína soa ainda mais inadequada por ter perdido o pai durante a infância, e o avô num passado recente. Logo, a função indispensável de “homem da casa” caberá oficialmente ao irmão pré-adolescente, incapaz de agir em defesa da mãe e irmã. Por questões práticas de necessidade financeira, e no intuito de concluir os estudos, Mariam frequenta bibliotecas, encontra as amigas, senta-se perto de um amigo no banco da praça. Para a moral conservadora, ela está provocando, e será devidamente punida por sua autonomia.

Em Chamas não sublinha seu evidente caráter político. A “maldição” que afeta mãe e filha, cuja origem se esclarece apenas no desfecho, visa representar a opressão das mulheres numa sociedade religiosa e patriarcal. O horror vivido pelas figuras femininas livres se transforma na ideia literal de uma monstruosidade masculina, atacando-as. Todos os homens, sem exceção, oprimem Mariam e sua mãe, em maior ou menor medida. Por isso, adquirem um olhar predatório e uma configuração física próxima aos zumbis.

As mulheres se encarregam da resposta naturalista e da atuação contida, enquanto os homens representam o absurdo, o aspecto grotesco do horror.

Apesar da clareza dos símbolos, o projeto faz bom uso das ferramentas do cinema fantástico. O cineasta Zarrar Kahn introduz pequenos elementos dissonantes, de maneira sutil e progressiva, permitindo que contaminem a trama tal qual a evolução de uma doença. Os sujeitos percebidos pela estudante podem existir, ou talvez decorram apenas de sua imaginação. Às vezes soam como possível ajuda, até revelarem seus objetivos reais. 

O público conservador deve se incomodar com a ousadia de atribuir a maldade ao sexo masculino. Logo, os homens reproduzem a opressão apesar de si, voluntariamente ou não. Critica-se um sistema, em detrimento de indivíduos específicos — uma inteligência fundamental do projeto enquanto discurso político. Por este motivo, em um dos instantes de delírio oferecidos à protagonista, ela ataca precisamente aquele que nunca lhe fez mal — o irmão menor — por pressentir no menino a raiz de um comportamento que viria a se reproduzir.

Esteticamente, as escolhas de fotografia, montagem e direção de arte contribuem à fascinante fronteira entre o naturalismo e a fantasia. As mulheres são colocadas com frequência atrás das grades de portas e janelas, de maneira verossímil (elas são reservadas ao espaço doméstico, e privadas do olhar alheio), porém progressivamente claustrofóbica. Quando sai à sacada, ainda cercada por grades, Mariam testemunha nas ruas um rapaz que começa a se masturbar pelo simples fato de olhá-la à distância. Ela continua encarando o inimigo, até o horror tomar conta de seu corpo — as mulheres podem ser violadas mesmo à distância, dentro do lar.

As luzes sugerem um estranhamento pelos tons ora idealizados (a cabana à beira-mar, o calvário pós-tragédia), ora próximos do grotesco (a transformação do hospital em espaço-fantasma). Já a montagem faz com que espaços completamente apartados se comuniquem, quando a porta de uma casa abre no apartamento de outro personagem, por exemplo. Brinca-se com a percepção do real, manipulando tempo e espaço de modo caleidoscópico. Mariam está sendo realmente lambida, perseguida? Devemos temer por sua segurança física, ou por sua saúde mental?

A “monstruosidade” masculina também adquire um caráter evidente, ainda que sutil. Os rapazes transtornados pela perseguição às amigas e pretendentes apresentam olhos embranquecidos, tal qual vítimas de alguma contaminação ou frutos de uma hipnose. Estão modificados, mas de algum modo que, à distância, ainda passem por indivíduos “normais”, e que, de perto, possam soar como vítimas de alguma doença. Até por isso, a estudante se permite correr em direção a um vulto no final do corredor, no intuito de compreendê-lo.

Em Chamas conta com ótimas atuações, tanto das duas protagonistas, quanto dos homens — todos, invariavelmente, em posição de coadjuvantes. Elas se encarregam da resposta naturalista e da atuação contida, enquanto eles representam o absurdo, o aspecto grotesco do horror. Pertencem, em termos de tom e constituição, a matérias cinematográficas distintas. Por isso, até a pretensa gentileza de Asad e Saleem transmite uma impressão de controle obsessivo.

Rumo à conclusão, a tensão alimentada cena a cena se permite explodir num clímax digno deste nome, e capaz de resolver, de maneira orgânica, todas as questões deixadas em aberto até então. Era preciso, depois de um trabalho asfixiante de atmosfera, enfim transformar o horror em um elemento visível ao espectador, assumindo o ponto de vista das mulheres e garantindo que sejam solidárias umas às outras graças à percepção das vivências equivalentes. Kahn foge, desta maneira, à armadilha de colocar as figuras femininas umas contra as outras.

O cineasta evita outros problemas notáveis, em especial, o risco de torturar Mariam em nome de uma denúncia pedagógica da opressão feminina. Muitas obras de terror perseguem, humilham e abusam de seus protagonistas para provar a gravidade dos preconceitos sociais. Neste caminho, reduzem a força e a subjetividade das minorias, preferindo martirizá-las (vide a série Them, ápice desta estratégia). Ora, escapando à exploração e ao gaslighting que se anunciavam no horizonte, o projeto trata de recolocar a perspectiva das mulheres nos devidos eixos, sem idealizá-las para tal. Oferece, desta maneira, uma experiência assustadora e inebriante, justamente por não se distanciar tanto assim do correspondente real.

Em Chamas (2023)
8
Nota 8/10

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