Vai e Vem (2022)

Mulheres em movimento

título original (ano)
Vai e Vem (2022)
país
Brasil
gênero
Documentário, Experimental
duração
82 minutos
direção
Chica Barbosa, Fernanda Pessoa
visto em
11º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba

Duas amigas se correspondem durante os tempos de medidas sanitárias relacionadas à Covid-19. Uma se encontra no Brasil, a outra, nos Estados Unidos. Mandam vídeos de seus apartamentos, áudios de suas inquietudes. Visto por este ângulo, Vai e Vem (2022) pode despertar o receio de constituir mais um “filme de pandemia”, do tipo que o cinema produziu à exaustão na deflagração do coronavírus.

Até 2021, os festivais de cinema refletiam a proliferação desta produção caseira, em todos os sentidos do termo, em que os cineastas revelavam a si próprios, junto aos familiares e companheiros, dialogando a respeito do vazio da vida em reclusão. Os artistas mais criativos, a exemplo de Grace Passô em República (2020), buscaram a fantasia e a distopia para ilustrar a angústia do fenômeno global, ou mesmo o humor autorreferente, no caso de Fábio Leal em Seguindo Todos os Protocolos (2021). Os menos inventivos, e talvez mais seguros de que suas vidas renderiam materiais excelentes ao espectador, contentaram-se em apreender um tédio ilustrativo, direto, no formato de um diário de bordo.

Agora, Fernanda Pessoa e Chica Barbosa relembram o público que estes obstáculos podem constituir um motor criativo e uma linguagem, ao invés de uma finalidade. As diretoras criaram uma obra com a pandemia, ao invés de sobre a pandemia. Felizmente, ambas possuem a noção de que os acontecimentos recentes dispensam explicações ao interlocutor. Sem a necessidade de contextualizá-los, podem ser pressentidos, evocados, transformados em metáfora e poesia.

A dupla elabora um cinema de criação, colando os cacos dispersos pela crise sanitária. Para além de documentá-la, começam a se projetar num futuro, num momento posterior, de reflexão e distanciamento. Só assim conseguem retratar este período global de direitas raivosas e ultraconservadoras por sua estética — toda ideologia é acompanhada de uma estética condizente, seja repressiva ou libertária. Por isso, as autoras respondem aos desmandos da gestão Bolsonaro, no Brasil, e da gestão Trump, nos Estados Unidos, com uma estética da subversão.

Pessoa e Barbosa se pautam pela estrutura rígida dos dogmas e dos manifestos. […] Tamanha riqueza de estímulos se combina com uma narrativa linear, tanto cronológica quanto discursivamente.

Elas abordam a linguagem a partir de regras muito claras. Estipulam que cada carta-vídeo enviada à outra deve se inspirar no estilo de uma diretora experimental, sendo enviada no prazo de três semanas. A experimentação jamais se confunde com aleatoriedade, com o uso indiscriminado de sobreposições, fusões e telas divididas. Rompe-se com o caráter do tudo ao mesmo tempo agora, frequente para quem associa a liberdade das formas com o caos e o direito de fazer qualquer coisa

Pessoa e Barbosa se pautam pela estrutura rígida dos dogmas e dos manifestos, excelente para enquadrar e estabelecer parâmetros à comunicação entre ambas. Por isso, revelam com antecedência ao espectador a inspiração de cada segmento. Passada esta exposição, espécie de carta de princípios, seguem com a narrativa, costurando conversas num fluxo único, desprovido de interrupções em letreiros ou capítulos. Primeiro, elas revelam as peças separadas, para então apresentarem a figura completa formada pelo quebra-cabeça.

Nestas trocas, desenvolvem uma política das formas. Mencionam Bolsonaro e Trump, o descuido de cada um com a pandemia e a disseminação voluntária de notícias falsas. No entanto, jamais dependem do grito ou dos diálogos para se fazerem entender: a articulação de imagens produz significado por si própria. Vai e Vem surpreende ao fragmentar as cenas, alterar as cores, apresentar captações caleidoscópicas, sequências repletas de humor sarcástico, além de jogos e alegorias visuais. 

Tamanha riqueza de estímulos se combina com uma narrativa linear, tanto cronológica quanto discursivamente. Elas se comunicam mês após mês, atravessam os feriados de fim de ano, seguem as eleições municipais em São Paulo, e presidenciais nos Estados Unidos. Colocam em paralelo duas formas diferentes de patriotismo, de conservadorismo e de machismo. Discorrem a respeito do pertencimento social enquanto mulheres de esquerda num momento de ode ao masculino, à força bruta, à pretensa autoridade dos policiais abusivos. Invocam seus poderes e responsabilidades enquanto artistas e criadoras face aos namorados em suas casas, aos vizinhos bolsonaristas-trumpistas, e à sociedade em geral.

A identidade feminina se sobressai ao longo da busca. Dialoga-se a partir de uma perspectiva feminina, é claro, mas também na representação da feminilidade (os autorretratos nus) e do conceito do feminino (com a introdução de mulheres transexuais e de homens cis gays). Pensa-se a política nas esferas íntima e pública, ou seja, na comunidade e dentro de casa. Fazer cinema apesar das dificuldades, apesar do machismo, apesar do presidente, torna-se um potente ato de resistência. 

Em consequência, o documentário constitui um cinema de montagem no melhor sentido do termo. Ele jamais desperta a impressão de ter captado registros a esmo, para então resolver seu ritmo, sua estrutura e mensagem na mesa de montagem. Fernanda Pessoa já havia demonstrado uma capacidade excepcional de pensar a partir de montagem conflituosas em Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava (2017). A representação do corpo feminino enquanto fetiche era explicitada por colagens precisas da pornochanchada brasileira.

O prazer de reunir segmentos dissonantes, revelando suas fissuras e costuras, se prolonga aqui, junto a Chica Barbosa. Através da tela dividida, seja na vertical ou horizontal, os monumentos brasileiros e americanos se conversam, enquanto diferentes sons, grafias e cores inundam a tela. Há espaço tanto para o controle (a montagem picotada enquanto uma ativista americana-mexicana se banha na piscina) quanto para o espontâneo (o gato curioso na janela). Algumas entrevistas serão clássicas (com a sogra da cineasta), e outras, em formato disperso, semelhante a ruminações íntimas. 

Encerra-se a experiência com a evocação da utopia, palavra feminina, e a crença numa transformação que ocorrerá somente via esforço árduo, ao invés da crença otimista numa melhoria natural do estado das coisas. Chegamos ao período em que finalmente a pandemia começa a ser analisada pelo cinema em profundidade, enquanto estética, pois a chegada da vacina e a perspectiva de abertura ao mundo nos permite ter um distanciamento mínimo para discutir o tema. Passamos de uma etapa da constatação (“o problema existe, vamos lamentá-lo”) ao momento posterior de análise.

Vai e Vem (2022)
8
Nota 8/10

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