A jornada se inicia num Rio de Janeiro futurista, em 2319. Um jovem explica ter sido criado num bunker após uma catástrofe mundial que impediu os seres humanos de viverem na superfície. O que teria acontecido? Um vírus mortal, monstros? O ar estaria irrespirável? Não sabemos. No entanto, sem nunca ter visto a luz do sol, o garoto decide sair e se aventurar por este mundo perigoso. Então ele poderia ter saído esse tempo todo, quando quisesse? O que o privou desta decisão antes?
Poucos elementos têm sentido, coerência ou coesão em Xamã Punk. A proposta da distopia de baixíssimo orçamento poderia render bons frutos, caso os criadores encontrassem maneiras criativas de representação, através de sugestões extra-quadro, insinuações via som, metáforas e metonímias. A Mostra de Tiradentes já exibiu inúmeros filmes de terror, fantasia e ficção científica cuja proposta se encontrava justamente na subversão de expectativas e na originalidade de códigos e fórmulas. Adirley Queirós e Ramon Porto Mota, por exemplo, realizaram maravilhas a partir de estruturas semelhantes.
Ora, o diretor João Maia Peixoto e sua equipe nem sequer se esforçam para tornar a distopia verossímil. Em outras palavras, nem eles parecem acreditar no que estão contando. Em primeiro lugar, jamais exploram a fundo a premissa. Como seriam o corpo, a voz, o comportamento de dois jovens que enxergam o sol pela primeira vez? Que noção teriam de interação em sociedade? Onde estaria o espaço ao desbunde, o medo do desconhecido, a ignorância, os preconceitos? Quem espera Kaspar Hauser se surpreenderá diante de dois adolescentes burgueses contemporâneos, comunicando-se como tais, e andando pela floresta a esmo.
Em segundo lugar, direção de arte, fotografia e som tampouco buscam uma forma de tornar este universo paralelo digno de crença. As garotas com os cabelos impecáveis, sobrancelhas delineadas e piercings na orelha transitam por aquilo que deveria ser um cenário de guerra, repleto de perigos dignos de manter a humanidade presa num espaço subterrâneo há gerações. Os trapos que vestem remetem a roupas comuns, rasgadas em locais específicos, sem grande cuidado ou atenção. Maquiagem, objetos, falas, trejeitos: nada permite vislumbrar uma passagem de tempo de dois séculos em relação aos nossos tempos.
Por incrível que pareça, a narrativa se leva a sério, como se estivesse veiculando uma imagem grave, uma mensagem importante, acerca do estado das coisas.
Esta poderia ser, portanto, uma paródia do subgênero, uma brincadeira com a expectativa de verossimilhança. Na chave do humor, os criadores poderiam ridicularizar os chavões do filme-espetáculo e os clichês aguardados do apocalipse. Ora, por incrível que pareça, a narrativa se leva a sério, como se estivesse veiculando uma imagem grave, uma mensagem importante, acerca do estado das coisas. Partindo de um bom cenário-personagem (o prédio abandonado no meio da mata), o cineasta se contenta em colocar os heróis diante de ruínas. Caberá ao espectador supor o medo, os obstáculos, o passado deste lugar e os riscos existentes pelo caminho.
Talvez Xamã Punk utilizasse a sugestão alegórica do caos para explorar a linguagem experimental — uma estética de rupturas para uma narrativa de rupturas. Entretanto, nada no uso das imagens, das cores, luzes, composições ou fricções entre som e imagem permite enxergar o resultado pela ótica da pesquisa audiovisual. Não se exploram as texturas, os fragmentos, nem se molda a percepção do olhar da maneira esperada para uma obra experimental propriamente dita. Restam as mesmas imagens lavadas, dessaturadas, levemente desfocadas e de enquadramentos móveis, sugerindo uma singela desordem nos sentidos.
A obra poderia ser chamada de “experimental” apenas pela compreensão do senso comum, que aproxima o rótulo do tudo-vale, do faça-qualquer-coisa, da negação de sentido enquanto finalidade. Esta confusão entre liberdade e aleatoriedade, entre explorar formas e propor uma forma qualquer, pairam sobre o projeto carioca. Este seria, ironicamente, um experimento sem disposição nem interesse para a experimentação de linguagem. Uma obra que se abre e se encerra em si mesma, como uma brincadeira, uma traquinagem entre amigos.
De fato, passados os 71 minutos — aparentemente, esticados até a mínima duração necessária para ser considerado um longa-metragem —, o filme deixa a impressão de que amigos se reuniram na floresta, e diante da bela descoberta das ruínas, pensaram juntos: e se a gente fizesse um filme? A ideia teria empolgado a todos, que se lançaram em um faz de conta do imaginário popular distópico: as garotas tribais com os seios de fora, os sobreviventes em registro animalesco, de rostos levemente sujos, os gritos eventuais, a câmera que chacoalha eventualmente, por motivo indeterminado.
Mesmo a descrição de comunidades originárias e autóctones resulta problemática. A certa altura, uma personagem entoa algo como um cântico indígena. Os indivíduos da floresta comportam-se como bichos embrutecidos, dotados de um linguajar precário. Os rituais envolvendo o pênis preso junto a um tótem (naquele estágio em que, após tantas aleatoriedades, nada mais surpreende) equipara os grupos da floresta, dos quais os índios seriam associações mais diretas, a animais perigosos e incultos. Cabe aos sábios burgueses da caverna explicar aos primitivos como funciona a eletricidade.
A grande surpresa, no final, reside menos na brincadeira inconsequente entre amigos do que na sua seleção numa mostra do porte de Tiradentes. É claro que o título se encaixa na dinâmica do cinema de mutirão, que consiste no tema da 26ª edição. Percebe-se que os criadores conceberam, executaram e finalizaram o filme sozinhos, da maneira que puderam. No entanto, espera-se que o cinema de mutirão consista numa proposta de linguagem, estética e discurso, para além de uma qualidade retórica, em si própria.
A sessão de Xamã Punk serve sobretudo à curiosidade de descobrir que tal filme existe, que se leva a sério pelos criadores, que foi levado a sério pelos curadores, e que pode ser exibido numa mostra exigente, junto a poucos longas-metragens. Seu valor residiria no choque de sua existência, ao invés do conteúdo, das formas, sensações ou visão de mundo que teria a oferecer. Pois bem, há mutirões e mutirões.