Na década de 1960, durante a ditadura militar, Luis Kaiowá foi retirado de seu território, no Mato Grosso do Sul, e reconduzido por agentes da Funai a outras partes do país. Muitos deslocamentos forçados depois, construiu sua vida perto de Dourados (MS). No entanto, distanciou-se da esposa e das duas filhas pequenas — entre elas, Sueli Maxacali que, décadas mais tarde, se tornou professora, cineasta e artista visual. A dificuldade de comunicação e a falta de transparência no processo fizeram com que pai e filha permanecessem mais de 40 anos sem notícias um do outro, até que a Internet auxiliasse na descoberta do paradeiro de Luís.
O documentário dirigido por Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luisa Lanna se propõe a registrar esta reaproximação. No entanto, engana-se quem imaginar que os fatos serão apresentados com a clareza da sinopse acima, de maneira linear e cronológica. Os criadores nunca demonstram uma preocupação didática no sentido estrito do termo, preferindo deixar a explicação um pouco mais extensa (e ainda assim, desprovida de detalhes) somente nos instantes finais. Eles dispensam igualmente o grito de denúncia contra um Estado que jamais honrou seus povos originários.
Os criadores nunca demonstram uma preocupação didática, no sentido estrito do termo. Preferem mergulhar na dimensão íntima e melancólica desta procura.
Preferem, em contrapartida, mergulhar na dimensão íntima e melancólica desta procura. O longa-metragem se inicia com uma foto (ou vídeo) da família, posando em frente à câmera, descrevendo cada irmão, filho, neto e primo ao interlocutor. Trata-se de um diálogo inicial com Luis, visando representar o profundo distanciamento entre os dois lados. Em seguida, muito antes de caminhar à cidade do pai, Sueli interroga as anciãs da aldeia, para escutar suas recordações em relação às migrações involuntárias de décadas atrás. As trocas são marcadas por elipses, ponderações, e muito silêncio. Este não parece ser um tema fácil para ninguém.
Logo, Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá sustenta um aspecto de road movie, para o qual interessa pouco o destino, contanto que o percurso seja transformador. Além disso, iniciamos a experiência sabendo o que nos espera no final — o paradeiro de Luis está garantida desde o princípio. Deste modo, evita-se a armadilha da chantagem emocional com o espectador (Eles se encontrarão? O pai estará vivo?) para se abraçar a delicada preparação ao momento da reunião.
Para o espectador habitual, o resultado ostenta um ritmo bastante atípico. Mesmo em projetos habituais do cinema independente nacional, dirigidos e pensados por pessoas brancas, costuma-se evitar o que se convencionou chamar de “tempos mortos”, além de redundâncias. Parte-se do princípio que devemos retirar o que não for “necessário”, indispensável à compreensão — correspondendo aos ideais capitalistas de produtividade e utilitarismo. Ora, o filme indígena abraça uma temporalidade específica, avessa à urgência. Sueli poderia estar com pressa de se deslocar, no entanto, toma os dias que julga precisar antes de efetuar esta travessia.
Assim, diversas cenas possuem duração extensa, de acordo com a montagem da cineasta Luisa Lanna. Múltiplas conversas e rituais estendem-se, dilatam-se. Estabelecem, desta maneira, uma relação direta com a percepção dos povos originários, para quem a repetição e gestos e frases integra a forma de se comunicar entre si, e com a natureza ao redor. O longa-metragem sustenta um teor de mantra, de ruminação circular e contínua que não pretende se esgotar com a redescoberta do pai. O aguardado momento constitui meio, ao invés de finalidade.
Em cada agrupamento os homens, para pintar tecidos, ou dançar coletivamente em companhia das mulheres, transmite-se uma forma conjunta de expiar dores e contar com o apoio alheio. Deste modo, somos apresentados a um modo de vida, ao invés de uma sucessão de fatos. Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá ainda desenha um interessante confronto de gerações, mostrando como os indígenas que cresceram durante a ditadura se diferem dos jovens Maxakali e Kaiowá, próximos das tecnologias e com mais acesso às informações dos brancos.
A quem pensa o novo cinema indígena enquanto gesto de afronta e reivindicação de direitos, encontra-se, em chave oposta, uma crônica terna. O quarteto de criadores opera numa forma de política dos afetos, representando as medidas desastrosas contra os povos indígenas através de seu impacto direto nas famílias. Sueli Maxakali investe no segmento do documentário autobiográfico e familiar, tão comum em nosso cinema brasileiro do século XXI, de viés confessional, narrado em primeira pessoa. Talvez seja mais fácil para o espectador médio, em termos de estrutura, se aproximar do cinema originário por meio de narrativas como esta.
Além disso, o filme demonstra certo pudor e respeito, avesso ao sensacionalismo tipicamente televisivo das uniões familiares. O clímax surpreende pela decisão de apenas sugerir alguns sentimentos e palavras. Sueli, na condição de protagonista e cineasta, preserva-se, evitando espetacularizar suas dores em nome da catarse do espectador. O drama estabelece, inclusive, instantes preciosos de leveza e humor, seja com as crianças, seja nas brincadeiras e provocações entre os adultos.
Por fim, existe tanta emoção quanto distanciamento crítico em relação aos fatos ocorridos — afinal, o que ocorre à cineasta está longe de constituir um caso isolado e atípico no histórico Kaiowá e Maxakali. Neste encontro entre distintos tons e pontos de vista, entre o desejo de se resguardar e a vontade de abrir sua história ao outro, elabora-se um filme importante no caminho de conexão do cinema originário com o público majoritariamente branco do cinema brasileiro.