O diretor Laurent Cantet tem construído uma carreira sólida no cinema autoral europeu. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes pelo drama Entre os Muros da Escola (2008), investiga a formação da identidade francesa, sem ter medo de colocar o dedo em feridas polêmicas como a exploração trabalhista (Recursos Humanos, 1999), o turismo sexual (Em Direção ao Sul, 2005) e os limites dos projetos pedagógicos voltados às minorias sociais (A Trama, 2017).
Agora, seu novo drama chega aos cinemas brasileiros pela Vitrine Filmes. Arthur Rambo: Ódio nas Redes (2021) analisa a cultura do cancelamento a partir de Karim D. (Rabah Nait Oufella), jovem escritor originário da periferia, em plena ascensão após o lançamento de um livro bem-sucedido. Quando as redes sociais descobrem uma série de publicações paródicas de conteúdo antissemita, machista e homofóbico disparados pelo rapaz no Twitter, sob o pseudônimo de Arthur Rambo, sua vida desmorona.
A trama se passa em apenas dois dias, inspirada no caso real de Mehdi Meklat, cuja vida virou pelo avesso a partir de um caso semelhante. Arthur Rambo: Ódio nas Redes foi selecionado nos festivais de Toronto e San Sebastián. O Meio Amargo conversou com o cineasta, em exclusividade, a respeito do projeto:
Como decidiu o conteúdo das publicações de Arthur Rambo?
Foi um trabalho muito difícil. Passamos longos dias, com os co-roteiristas, escrevendo estes tuítes. Entendemos rapidamente que uma das questões principais do filme era encontrar uma boa distância do filme em relação ao personagem. Era importante não transformá-lo num monstro, afinal, um monstro escrevendo monstruosidades não despertava meu interesse. Era preciso estar do lado dele, manifestar empatia por ele. Ao mesmo tempo, não podíamos esquecer da grande responsabilidade de Karim ao escrever aquelas coisas. Por isso, o teor dos tuítes precisou ser dosado com muito cuidado.
Percebemos na montagem que bastaria ter um tuíte mais violento para perdermos completamente o interesse pelo personagem. Se os tuítes fossem leves demais, os espectadores perguntariam porque tamanha polêmica em torno disso. Era preciso dosar o teor da violência. Trabalhamos isso ao longo do filme inteiro, até o final da montagem. Tentei buscar questões de provocação frequente, como o antissemitismo, o machismo, a homofobia. Estes são espaços onde a provocação é mais forte, e pode-se de fato se tornar chocante com rapidez. Também era preciso que fosse engraçado de fato, para parecer um tuíte de provocação. Ao mesmo tempo, o fato de escrever estas coisas não nos dava muito orgulho de nós mesmos.
Foi por isso que incluíram uma mensagem no final, precisando que não compartilham o ponto de vista destas postagens?
Não. Eu confio na ficção para não despertar este tipo de reação. Esta foi uma história real na França, que ocorreu ao jovem Mehdi Meklat, que foi destruído por tuítes que tinha escrito. Não queria que atribuíssem a autoria desses comentários a ele, e que pensassem que se tratava de uma reprodução das mensagens dele. Foi uma maneira de protegê-lo disso.
Os amigos de Karim sabiam dos tuítes, mas só se sentiram ofendidos quando o caso se tornou público. Como enxerga esta moral próxima da hipocrisia?
Foi de fato o que aconteceu naquela noite, com Mehdi Meklat. Todos riram muito com os acontecimentos, mas o abandonaram assim que o escândalo chegou à mídia. Então achei interessante incluir este aspecto. O filme também chama atenção à noção de uma responsabilidade coletiva. É óbvio que existe uma responsabilidade imensa daquele que escreve, mas os outros que leem, riem, curtem e compartilham são igualmente responsáveis, porque alimentam a máquina. Era importante mencionar esta questão.
Por que a história se passa nos dois dias após o início do escândalo, ao invés de analisar os efeitos a longo prazo na vida de Karim?
Primeiro, não queria fazer uma biografia de Mehdi Meklat. Ao me concentrar nestes dois dias, encontrei uma maneira de estudar os mecanismos do caso, ao invés de analisar o que o levou a publicar os tuítes, sua infância, etc. Tive a impressão de que, ao me dedicar a estes dois dias, poderia compreender melhor como estes fenômenos acontecem. Além disso, esta escolha me permitia dar um ritmo ao filme, parecido ao imediatismo e à velocidade das redes sociais. Em algumas horas, cria-se um herói e se destrói uma pessoa. Queria fazer um filme rápido, uma espécie de perseguição sem fim. Karim fica o tempo inteiro indo de um lugar para o outro, fugindo desta história complicada para ele.
De fato, ele fica perto do suspense psicológico, do cinema de gênero. O teor se torna cada vez mais sombrio.
Esta era uma maneira de representar a nossa época. Queria que o filme tivesse algo muito moderno na forma, sendo rápido, indo direto ao ponto. Por isso, o teor sombrio era importante. Ao contrário da simplificação do pensamento imposta pelas redes sociais, especialmente pelo Twitter — como ser complexo em 140 caracteres, ou mesmo em 280? —, a decisão de me concentrar em dois dias permitia observar momentos precisos.
O filme levanta muitas questões que norteiam o debate, mas não tenho respostas definitivas para oferecer. Em contrapartida, espero ter lançado todas as pistas necessárias, levando em consideração que todos fazem a mesma pergunta a Karim: “Por que você escreveu isso?”. Mas o contexto muda de acordo com os diferentes “júris” que ele encontra. De fato, é muito próximo de um filme de tribunal, e a cada vez que Karim se confronta a um jurado diferente, ele questiona suas próprias ações por um novo ponto de vista.
As pessoas perguntam por que ele escreveu os tuítes, mas também por que ele nunca apagou as postagens — e Karim continua sem apagar as postagens. Ele tem certo apego a estas manifestações.
Não sei se ele tem apego, mas de qualquer maneira, é ilusório pensar que podemos apagar as publicações. Mensagens chocantes como estas são salvas por alguém, sempre. Foi o que ocorreu com Mehdi Meklat. Este é um dos principais problemas das redes sociais: não existe o direito ao esquecimento. Você pode se esquecer de algo que publicou, mas eventualmente alguém descobrirá algo que você colocou nas redes, no passado, seja vinte anos atrás. Se levarmos em consideração todas as besteiras que dissemos aos quinze anos, também seremos facilmente atacáveis. Sempre há traços e provas.
Que qualidades Rabah Nait Oufella tinha para escolhê-lo a este papel? Como o dirigiu para um personagem tão ambíguo moralmente?
Rabah tinha uma compreensão enorme do personagem. Seu percurso foi similar, de certo modo. Ele nunca escreveu nenhuma atrocidade no Twitter, mas Rabah foi um dos alunos de Entre os Muros da Escola. Esta foi a primeira experiência dele no cinema, o que o agradou muito. Depois disso, ele teve papéis cada vez mais importantes nos filmes. Fiquei muito feliz de trabalhar com ele de novo, e inclusive escrevi o personagem pensando nele.
O percurso social dele se parece com o de Karim: Rabah continua vivendo no bairro onde o encontrei, e onde filmamos Entre os Muros da Escola. É um bairro popular de Paris. Ele vivia até há pouco tempo com seus pais, e era conhecido por todos como “o ator”, “aquele que faz cinema”. Ele tinha um status duplo, de jovem que sempre levou uma vida parecida, e de jovem cuja vida realmente se transformou. Ele fala muito bem sobre a responsabilidade desta condição. Isso me despertou a ideia de que ele seria a pessoa perfeita para o papel. Eu até desconfiei do meu afeto por ele, e testei outros atores antes de decidir. Mesmo assim, achei Rabah melhor do que todos os outros. Ele era muito preciso, sempre.
Na cultura do cancelamento, onde se estabelece o limite entre a justiça e a perseguição?
Há muitas questões nessa pergunta. As pessoas não colocam suficientemente as discussões em seus contextos históricos específicos. Esse é um problema, e precisamos tomar esta precaução o tempo inteiro. Mesmo assim, no caso de Karim, existe uma raiva e uma violência de sua juventude que ele consegue domar para passar ao status de escritor consagrado. Mas esta violência persiste, ela reside nele. Não quero torná-lo responsável: para mim, ele é uma vítima desse processo todo. Era importante considerar isso também. Isso evidentemente não justifica, nem desculpa, a violência dos tuítes que escreveu. Mas isso pode me ajudar a decodificar os fatos.
Ele se torna, ao mesmo tempo, o algoz e a vítima do que lhe ocorre.
Este foi o maior desafio, desde a escritura do roteiro até a finalização: deixar o espectador constantemente dividido entre o sentimento de que Karim é responsável por seus atos, e não pode ser desculpado, e a vontade real de compreendê-lo e ficar junto dele. O próprio Karim não entende o que fez, e busca explicações para suas ações. Neste percurso, encontra pistas, e progressivamente, se torna lúcido. Quando é entrevistado pela jornalista na casa dele, algo realmente ocorre em sua cabeça, e ele compreende o que ocorre. Isso vai até o final do filme, quando ele afirma: “Não consigo mais pensar”. Estamos muito presos ao instante, ao turbilhão das redes sociais.
Esta é uma das questões importantes dos nossos tempos: o que fazer com as belas obras de homens detestáveis? Devemos parar de ler o livro de Karim? A questão se intensificou desde o movimento MeToo.
Não tenho resposta definitiva a respeito. De qualquer maneira, no caso de Karim e dos jovens que me serviram como exemplo, não acredito que Karim seja antissemita e homofóbico. Acho que ele se deixou levar pelo jogo do Twitter, que consiste na vontade de ser popular, de receber mais curtidas. Este componente da nossa época me assusta demais: a vontade de ser popular, que nos faz dizer coisas absurdas. Quando os punks de antigamente cuspiam na cara da sociedade, eles não o faziam para ganhar likes. Eles queriam gritar sua raiva. Hoje, temos um fenômeno estranho onde a provocação se torna um modo de sedução. Ela basta por si mesma. Eu acredito sinceramente que Karim não defenda de fato o que escreveu — esta é a minha opinião, que pode ser diferente da sua. Mas é a máquina que provoca isso.
O filme chega aos cinemas brasileiros depois das eleições presidenciais francesas. Podemos interpretá-los como o sintoma de um país dividido, cada vez mais propenso às ideias da extrema-direita?
Sim, com certeza. O filme busca representar este ambiente, fruto de um país fraturado. Estas pessoas empurradas cada vez mais longe nas periferias acumulam muita raiva, e diversos moradores começam a ter medo delas. Criamos um mundo totalmente bipolar, e colhemos os frutos disso hoje.