Os cinemas brasileiros recebem neste momento um dos dramas latino-americanos mais premiados dos últimos anos: Clara Sola, de Nathalie Álvarez Mesén. Depois de uma primeira exibição no Festival de Cannes, o drama venceu a Mostra de São Paulo, os Festivais de Estocolmo e Guldbagge, além de receber prêmios em Nashville, Turim e Reykjavik.
No centro da trama se encontra Clara (Wendy Chinchilla Araya), mulher dotada de uma relação particular com a natureza. Para os familiares, esta mulher de 34 anos constitui uma santa milagreira, precisando permanecer casta para corresponder às vontades das matriarcas do povoado. No entanto, a mulher tem pulsões sexuais que se manifestam de maneira cada vez mais forte, levando a tensões crescentes com os vizinhos conservadores. Leia a crítica do Meio Amargo.
Conversamos em exclusividade com a diretora sobre o filme:
Por que escolheu como personagem principal uma mulher com uma percepção de mundo diferente das demais?
Não foi uma tanto uma escolha. Desde que pensamos neste projeto, Clara o guiava. A primeira cena que criamos foi a de Clara se masturbando na natureza, rodeada de vagalumes. Ela já vinha da natureza para a casa. Então o processo veio disso: ela surge da natureza.
Para você, que papel os fenômenos da natureza desempenham para representar a psicologia de Clara?
Essa pergunta esclarece a minha resposta anterior. É justamente por vir da natureza que Clara tem essa visão de mundo particular. Ela possui uma escuta diferente dos demais, e uma linguagem diferente das outras pessoas da comunidade. A natureza é um personagem, e também o único com quem Clara tem uma relação simbiótica e não-hierárquica. A natureza não espera nada desta mulher, então ela pode ser quem é, sem desempenhar um papel preestabelecido. Esta é uma relação liberadora. Yuca, o cavalo, permite que ela desenvolva uma relação mais ativa em relação ao mundo. Toda a natureza não-humana, o que inclui a água, a terra e o vento, se comunica com ela.
De que maneira escolheu sua atriz principal, e como dirigiu Wendy Chinchilla Araya para fugir aos estereótipos?
Fizemos um teste de elenco com mulheres que já desempenhassem um papel profissional com seus corpos. Eram artistas de circo, de dança e das artes marciais, ou seja, mulheres com grande conhecimento e consciência de seus corpos. Conheci Wendy num espetáculo de dança contemporânea e nos conectamos. Trabalhamos livremente a partir do corpo, dos elementos da natureza. Apostamos numa imagem interna: Clara era 20% loba. Tínhamos imagens de fogos por dentro, de raízes. Clara tem um problema de coluna, então usamos a metáfora das raízes. Assim, nós nos aproximamos da personagem. Esse método se justificava por nossa formação: ela vem da dança contemporânea, e eu, do teatro físico.
Acredita que as sociedades contemporâneas tenham evoluído na compreensão da sexualidade feminina?
Sim e não. Isso depende de qual local do mundo, de qual família, de qual religião. Depende de inúmeros fatores. Falamos mais abertamente sobre o tema em alguns locais do mundo, mas apesar de repetirmos essa história há tempos, ainda existe muito trabalho a fazer. Sustentamos ideias de normas sociais antiquadas e repressoras. Precisamos continuar falando sobre elas para trabalhá-las juntos, enquanto sociedade. Mas obviamente isso vai mudar drasticamente de um país a outro.
Uma história como a de Clara poderia se passar na cidade grande? Ou em outro país? Qual era a importância de situar a narrativa numa aldeia remota?
Sem dúvida, muitos países preservam ideias conservadoras semelhantes àquelas que vemos no filme. Isso independe da religião e da cultura. Também acredito que essa narrativa poderia se passar na cidade pela temática, mas seria outro filme. Aqui, a relação com a natureza é fundamental, e dependendo da cidade, este contato não é cotidiano. Queria uma personagem que tivesse crescido na natureza, podendo acompanhar sua transformação ao longo das décadas. Talvez histórias semelhantes pudessem se desenvolver na cidade, mas esta, em particular, precisaria ser na aldeia.
Clara Sola foi realizado em coprodução com cinco países. Em que medida esta configuração permitiu ao filme existir?
Sem essa coprodução, não teria sido possível fazer Clara Sola. Fazer cinema na América Latina é muito difícil. Para garantir que todos tenham seus salários, quase sempre é importante ter coproduções com outros países da América Latina e da Europa — exceto quando você faz uma produção bastante comercial. Sem estes outros países, teria sido impossível viabilizar o projeto.
O Brasil vem sofrendo com um abandono de políticas públicas para o cinema. Em que medida o governo da Costa Rica apoia sua produção audiovisual?
O governo da Costa Rica tem um programa chamado El Fauno. Ele é um pouco instável, porque não se sabe quantos projetos serão apoiados por ano, se será apenas para desenvolvimento ou para coprodução. Neste momento, acredito que o programa preveja apenas o estímulo de coprodução enquanto país majoritário, não como minoritário. Muitos países europeus têm fundos próprios, que permitem fazer coproduções oficiais. Clara Sola é uma produção majoritariamente sueca, mas não queríamos chegar na América Latina com outra produtora. Era preciso ser um filme costa-riquenho de verdade. A única maneira de garantir isso, com apoios econômicos, era ter os fundos locais. O financiamento do Fauno foi fundamental para isso, garantindo que fosse um filme costa-riquenho, filmado no país. No caso do Brasil, o governo reconheça a importância do cinema — especialmente neste país com uma relação historicamente tão profunda com o cinema.