Clara Sola (2021)

O sexo das santas

título original (ano)
Clara Sola (2021)
país
Suécia, Costa Rica, Bélgica, Alemanha, França, EUA
gênero
Drama
duração
106 minutos
direção
Nathalie Álvarez Mesén
elenco
Wendy Chinchilla Araya, Ana Julia Porras Espinoza, Daniel Castañeda Rincón, Flor María Vargas Chavez, Laura Román Arguedas, Fabrizzio Josue Vallecillo Vargas, María Belén Román Quesada, Rodolfo Esquivel Gómez, Luis Gerardo Cruz Cruz, Kianny Castro Bravo
visto em
Cinemas

O drama possui uma maneira muito particular de apresentar sua personagem, algo que poderia ser descrito, ironicamente, como uma abordagem delicada e violenta. Clara (Wendy Chinchilla Araya) é descrita em tempos dilatados, através de uma relação contemplativa e doce com a natureza. Descobrimos aos poucos que a mulher possui alguma forma de limitação intelectual, sendo tratada pelos familiares como criança, deficiente e santa, em simultâneo.

Este status diferenciado pode ser considerado uma prisão ou uma bênção, a gosto. Enquanto os outros executam tarefas pesadas na fazenda, Clara é deixada solta a perambular pelo território, porque já está ocupada “trabalhando para Deus”. Em contrapartida, sua vida é controlada e determinada pela mãe idosa: as roupas, penteados e ações devem corresponder às vontades da matriarca. A heroína é tola e divina; arisca e pura. Ela dedica as tardes a abraçar o cavalo querido, a deitar pelo gramado e observar os demais. A protagonista constitui uma presença ausente.

O aspecto mais brusco relacionado a esta mulher diz respeito à vigilância de sua sexualidade. Sendo considerada uma santa virgem, precisa permanecer casta aos olhos do vilarejo. No entanto, a mulher de compreensão limitada do mundo carrega uma libido latente, manifestada à sua maneira: às vezes masturba-se enquanto assiste ao romance de uma telenovela, ou pratica beijos com garotos mais novos da região. Em represália, a mãe lhe passa pimenta nos dedos, na intenção de coibir os atos.

A noção de liberdade se torna central na produção costa-riquenha. Clara é instalada numa espécie de prisão dourada, da qual pode sair a todo instante — mas para onde iria? O tédio da rotina se contrasta com as agressões familiares contra seu corpo e sua autonomia. A mulher recebe visitas com um olhar arredio e uma cadeira empunhada aos hóspedes, sendo no entanto ignorada por estes na condição de “louca”, ou insignificante. A santa seria essencial e dispensável à família, que lhe dedica muitas horas diárias de cuidado (ou censura).

A estética acompanha esta mistura de melancolia e brutalidade. A diretora Nathalie Álvarez Mesén provoca uma fusão de sua personagem central com a natureza, desencadeando uma infinidade de símbolos encarregados de manifestar as sensações que ela não pode, ou não consegue, expressar. Enquanto se cala, suas emoções se traduzem na chuva que chega em dia ensolarado; num besouro de aparência única; no terremoto assombrando a região em momentos bem específicos; num incêndio conveniente. 

Existe uma ideia belíssima, e arriscada, de fazer com que riachos, florestas e céus sirvam de representação para o rico universo íntimo da mulher.

Assim, a relação com os fenômenos naturais aproxima este cinema ultra naturalista do realismo fantástico, como se Clara fosse capaz de provocá-los pelo pensamento. Existe uma ideia belíssima, e arriscada, de fazer com que riachos, florestas e céus sirvam de representação para o rico universo íntimo da mulher. Isso reforça a aparência concomitante de poder e de impotência, ou de onipresença e invisibilidade. Raras personagens femininas possuem um status (imagético, social, discursivo) tão complexo quanto esta.

A atriz Wendy Chinchilla Araya contribui à pluralidade de interpretações. Teria sido fácil represar a heroína na imagem caricatural do autismo ou do retardo, convertendo-a em vítima, ou em figura mais sensível porque deficiente, seguindo a ideia paternalista de que a limitação intelectual implicaria em pureza. Ora, a intérprete navega entre a observação e o ato de espiar, entre a candura e um caldeirão de sentimentos (incluindo o desejo, o ódio, o descontentamento) expressos em cada cena. 

O ápice deste refinamento de roteiro, direção e atuação reside no relacionamento com Santiago (Daniel Castañeda Rincón), o funcionário responsável pelo cuidado com os cavalos. Clara o deseja sexualmente, mas também aprecia sua companhia enquanto amigo. Os dois se revezam na função de transmitir conselhos, de guardar segredos e até nas manifestações do potencial erótico — a troca de olhares durante um ato sexual de Santiago, através da janela, é particularmente bem filmada. Os dois nutrem um elo visível apenas ao olhar cúmplice do espectador. Os demais personagens nem sequer conhecem o grau de intimidade que desenvolvem.

Este seria outro mérito notável da obra: o posicionamento em relação ao espectador. A diretora mantém o olhar preso à percepção de Clara, razão pela qual as imagens privilegiam a sensação ao intelecto. O espectador fica junto a esta mulher, observando-a de perto, porém sem invadir sua privacidade (sequências de masturbação ou corte de pêlos pubianos são sugeridas fora de quadro); nem espiá-la de longe, como voyeurs. O público tampouco é convidado a se apiedar por esta figura, ou considerá-la mais nobre que as demais. 

Existe um cuidado para situar nosso olhar de igual para igual, evitando hierarquias. A naturalidade com que se apresenta uma pessoa especial (no sentido estrito do termo) se torna determinante para a rica experiência sensorial do filme. Aos poucos, o roteiro aposta em símbolos de fuga e abertura ao acaso: o cavalo foge; o inseto foge; Clara pensa em fugir. Cria-se uma discreta progressão dos elementos: conforme a sexualidade ameaça sair dos contornos rígidos impostos pelos familiares, os acontecimentos ao redor também extrapolam o domínio dos personagens.

Clara Sola impressiona pelo domínio da mise en scène, apostando numa paisagem repleta de estímulos sonoros, de sugestões extraquadro, de composições rigidamente pensadas. Este registro de contato direto da natureza costuma ser associado à câmera na mão e ao despojamento formal, em contrapartida, Mesén aposta no formalismo e no prazer dos enquadramentos. Não há espaço para aleatoriedades ou improvisos: cada signo é precisamente filmado e desenvolvido ao longo da trama (a água do riacho, o besouro, o cavalo branco, a festa de 15 anos). 

Por fim, pode-se falar num projeto de difícil descrição — o que pode ser considerado um elogio no contexto do circuito comercial brasileiro. Longe de ser hermético, visto que as cenas e os acontecimentos seguem uma estrutura linear, consegue introduzir uma tapeçaria de sugestões ao espectador, sem esgotar seu significado. Há inúmeras maneiras de ler o turbilhão representado por Clara, que se autodenomina “sozinha” (o “Sola” do título), ainda que contenha todos os fenômenos da natureza dentro de si. 

Clara Sola (2021)
9
Nota 9/10

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