Steppenwolf (2024)

A coreografia do caos

título original (ano)
Steppenwolf (2024)
país
Cazaquistão
gênero
Drama, Ação, Suspense
duração
102 minutos
direção
Adilkhan Yerzhanov
elenco
Azamat Nigmanov, Yerkin Gubashev, Nurbek Mukushev
visto em
Festival de Roterdã 2024

A violência domina Steppenwolf. O filme se abre com escudos policiais jogados ao chão, cobertos de sangue. Em menos de cinco minutos, apresenta tiroteios, perseguições, cenas de tortura. Talvez esta produção cazaque não traga uma cena sequer imune às armas, à agressão física e psicológica. Em sua adaptação de Hermann Hesse, o cineasta Adilkhan Yerzhanov se dedica a um mundo desprovido de leis, onde os conflitos e desejos são resolvidos pela pulsão de morte.

Para ocupar esta terra de ninguém, elege dois protagonistas alheios aos compromissos sociais, um deles por excesso de malícia e perversão, e a outra, pela total ausência destes elementos. Seja no exagero e no comedimento, na exterioridade e na interioridade, espera que se equilibrem. Por um lado, existe o investigador cínico e impiedoso, que aceita a tarefa de encontrar uma criança sequestrada por bandidos. Por outro lado, a mãe do menino desaparecido. 

A mulher sofre de alguma deficiência cognitiva, talvez inserida no espectro autista. Sua condição jamais será rotulada com qualquer síndrome ou patologia. Ela manifesta dificuldades em se comunicar e avaliar comportamentos alheios. Neste contexto, representa a pureza, a ingenuidade, associada à infantilização e à feminilidade — ambos aspectos que podem ser criticados numa produção contemporânea, diga-se de passagem. Ela está sempre limpa, intacta, em oposição ao aspecto maltratado, sujo e sangrento do parceiro de viagem. Ele significa a brutalidade masculina, viril e animalesca sugerida pelo título, em referência aos lobos tipicamente encontrados no Cazaquistão.

A masculinidade salvará o mundo, mas será uma forma de masculinidade grotesca, assumidamente caricata — uma brutalidade eficiente e condenável.

Há inúmeras possibilidades para filmar a violência. Pode ser por um prisma da imersão, ou do distanciamento. De maneira cômica, grotesca, absurda, revoltante, ou ainda sedutora. A violência pode ser realista ou fantástica, com aparência de caos ou de organização, ligada a motivos socioculturais precisos, ou descolada dos referenciais políticos. Quando ocorre em tamanha intensidade ou frequência, levanta inevitáveis questionamentos a respeito do sadismo, ou da possível diversão do autor em dilacerar corpos e multiplicar cadáveres.

Steppenwolf foge às principais armadilhas éticas ligadas ao voyeurismo mórbido. É evidente que não a enxerga enquanto ferramenta legítima de retaliação, nem como uma alternativa prazerosa de conduta em sociedade. O ponto de vista acompanha a dupla central sem defendê-la, nem julgá-la moralmente. Os gestos desumanos do homem e a passividade crônica da mulher se convertem em formas de reações possíveis, e equivalentes, nesta distopia contemporânea. Se todos estão tentando me matar, que diferença faria eu executar meus desafetos? 

Ora, quanto tudo é morte, nada o é. Algo semelhante ocorre no cinema de ação (pensemos em Michael Bay e derivados): após a décima explosão seguida, elas deixam de impressionar. Provocam certa anestesia dos sentidos, e incapacidade de se sentir mal, ou empático, pelos corpos anônimos empilhados no chão. A persistência dos ataques leva a certo distanciamento — as matanças se equivalem até se tornarem impessoais. Neste longa-metragem, pouco importa quem realmente sejam os gangsteres procurados pelos protagonistas, ou quais capangas sucumbem às balas. Corpos caem, e segue-se adiante.

O mais impressionante, neste caso, reside na capacidade do autor em coreografar e organizar a desordem provocada por ele mesmo. A direção se diverte em aumentar as proporções das sequências explosivas, apenas para encontrar novas maneiras de filmá-las, iluminá-las e montá-las, de modo a compreendermos quem atira em quem, de qual ponto de vista, e para onde se deslocam. O ápice reside na cena de conclusão, um imenso tiroteio noturno, iluminado pelo fogo distante, em contraluz, refletido numa névoa persistente. Trata-se de um belo momento de cinema, profundamente formalista e estetizante. Yerzhanov enxerga beleza na guerra.

Os numerosos movimentos de câmera são orquestrados através de um rígido estabilizador, impedindo que a imagem trema ou gire num gesto abrupto. Cada passo dos protagonistas será devidamente acompanhado pela fotografia atenta, que corre e se desloca tanto quanto os humanos em cena. Pode-se falar numa estética do controle: nada é deixado ao acaso, em grandes planos fixos, por exemplo. As falas e movimentos são previstos e ensaiados tal qual uma apresentação de dança. 

Entre os cineastas que tentam encaixar a sua câmera no mundo, e outros que concebem um mundo para caber às vontades da câmera, o cazaque pertence a este último caso. Até os pequenos símbolos retornam (a porta que abre e fecha, o gesto com as mãos, os peões), os espaços se completam (vide a primeira e a última cena), e os destinos serão, em certa medida, exatamente aqueles traçados a princípio. Nada escapa a esta ficção marcada pelo excessivo controle e intervenção no meio — ainda que atenuado pelo humor sinistro, decorrente da situação absurda onde se encontram os solitários. 

O cineasta se assemelha à personagem feminina que, do alto de uma escada, reflete a luz do sol no rosto do parceiro em apuros, com a ajuda da superfície refletora de um cubo mágico. Ele ressalta sua precisão e escolha de enquadramentos. Até por isso, nunca permite que matanças sejam filmadas de perto, ou em tempo longo o suficiente para incomodar. Busca, de fato, a apatia diante da carnificina, levando ao espectador o questionamento acerca da desumanização em tempos de barbárie. O diretor certamente reflete bastante acerca de suas escolhas de mise en scène.

O resultado soa como a versão questionadora e luxuosa de uma premissa tipicamente hollywoodiana — mulher frágil contrata homem destemido para resgatar criancinha em apuros. Se ocorresse na indústria norte-americana, o protagonista talvez fosse interpretado por Liam Neeson ou Bruce Willis. Aqui, ele se torna um anti-herói detestável e perverso, que dança diante de cadáveres e fuma enquanto recebe uma rajada de balas em sua direção. Mesmo assim, prova-se eficaz na tarefa de procurar pelo garoto. A masculinidade salvará o mundo, mas será uma forma de masculinidade grotesca, assumidamente caricata — uma brutalidade eficiente e condenável.

A sobrevivência se torna possível apenas mediante a adesão das regras tirânicas estabelecidas pelo inimigo. Neste sentido, o “final feliz” sugerido pela trama revela seu niilismo e amargura ao sacrificar algumas pessoas em nome da resistência. Esqueça o romance, as amizades duradouras, os discursos de agradecimento, a recompensa emocional. A distopia continuará, apesar de uma pequena batalha vencida. Os personagens são muito menores do que o sistema, concebido para engoli-los. Restam os ingênuos e puros, não por sua virtude moral, mas pela simples inabilidade de enfrentar os fortes. Enquanto os lobos se devoram na estepe, as ovelhas permanecem vivas, à distância.

Steppenwolf (2024)
6
Nota 6/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.