O diretor Eduardo Morotó tem se destacado no audiovisual brasileiro por diversos curtas-metragens premiados, dentre eles, Quando Morremos à Noite (2011), baseado no conto de Charles Bukowski. Anos depois, surge a oportunidade de transformar a premissa num longa-metragem. Em A Morte Habita à Noite, o diretor retoma a parceria com o ator Roney Villela para o papel de Raul, um escritor marginal e fracassado, que tenta desenvolver sua obra em cortiços enquanto se relaciona com mulheres que passam por sua vida e o abandonam. Na trama, Mariana Nunes, Endi Vasconcelos e Rita Carelli interpretam as paixões e desafetos do protagonista.
Em 15 de dezembro, o longa-metragem chega aos cinemas brasileiros, distribuído pela Vitrine Filmes. O Meio Amargo conversou com o diretor para entender o interesse pessoal em Bukowski, além da arte de reduzir um filme de cinco horas, inicialmente, para uma duração convencional, e o tratamento de gêneros sob o cenário do Recife antigo.
Por que quis expandir a premissa do curta Quando Morremos à Noite num longa?
Fiz o curta de forma muito despretensiosa. Ele foi realizado através de um prêmio revelação do Festival de São Paulo. Eu tinha pouco tempo para pensar num roteiro, porque o prazo era curto para enviar para eles, que também eram produtores do filme, e precisavam aprovar antes, algo assim. Mas eu não tinha nenhum roteiro pronto na época. Aí me lembrei do conto “A Mulher Mais Linda da Cidade”. Nessa época, queria ter mais experiência de direção de atores, porque meus curtas anteriores eram mais sensoriais, mais imagéticos. Então pensei nesse conto, porque tem muito jogo cênico entre dois personagens. Acabei fazendo o curta, e foi surpreendente a quantidade de festivais por onde passou, e de prêmios que recebeu. As pessoas gostaram bastante do personagem do Raul, que o Rony já interpretava. Aí veio o convite de transformar o curta num longa.
Por que acredita que as pessoas tenham se identificado tanto com Raul?
Talvez isso tenha a ver com a relação mostrada no curta. Isso já faz mais de dez anos. Mas de alguma forma, a relação dele com a garota, interpretada pela Thaís Loureiro, já tem sintomas de algo que passou a ser muito mais debatido a partir desse momento, em especial, a questão do feminino. A forma como o Raul foi construído pode justificar esse interesse, o que também vale para a construção da personagem feminina. Pelo menos, esse era o retorno que eu tive na época.
Bukowski talvez tenha sido o primeiro escritor que também vinha do proletariado, e que escrevia sobre esse universo.
O que te atrai nos textos de Bukowski?
Tanto o longa A Morte Habita à Noite quanto o curta nascem da vontade de falar nem tanto sobre o Bukowski, mas de alguns personagens dele, e desse sentimento do proletariado. Ele talvez tenha sido o primeiro escritor que também vinha do proletariado, e que escrevia sobre esse universo. Ele narrava uma rotina de escassez que gerava certa aproximação com estas pessoas, vivendo nestes ambientes em ruínas, nas grandes cidades e nas capitais. Por mais que o personagem do Raul tenha crescido, a primeira ideia quando fiz o curta era falar da personagem da Cássia. No conto, ela me tocava muito. Isso me gerava curiosidade, ao pensar como essas mulheres se viravam neste ambiente noturno, e mais tribal.
A Morte Habita à Noite tem três mulheres importantes, mas o protagonista ainda é um homem. Como enxerga a distribuição de gêneros nessa história?
Assim que me veio a oportunidade de criar o longa, pensei logo em dividir a história em três partes, cada uma delas sobre uma mulher diferente. De alguma forma, o Raul funcionaria como um cronista, falando sobre estes encontros. Essa era a oportunidade de abordar vários tipos de relação, várias formas de amor também. Com a Lígia, tem algo de casal mesmo, de romance. Com a Cássia, tem um sentimento paterno, porque ela não teve boas experiências com os homens antes, e representava a decadência da masculinidade. A última mulher ilustra um encontro poético dele com a morte. Eu sempre pensava muito em falar sobre estas mulheres, mas Raul funciona como um narrador. E eu também sou homem: essa era uma forma de falar sobre isso a partir de um personagem masculino. A narrativa está com as mulheres. Quando a gente pensa, a história é muito mais delas, do que dele. Essa escolha foi consciente.
A narrativa está com as mulheres. Quando a gente pensa, a história é muito mais delas, do que de Raul.
Qual era a importância de situar a história em Recife, nesta época?
Recife é um lugar repleto de Rauls. Primeiro, o Nordeste preserva certa poesia brasileira muito forte. Muitas pessoas não se entregam aos moldes sociais tradicionais, em especial, no que diz respeito ao capital. Ainda tem muita gente se dedicando ao sonho de ser escritor, de ser cantor. Mesmo que nunca ganhem nada a vida inteira, as pessoas seguem sonhando em estar nesse lugar. Na parte central do Recife, tem muitas figuras assim, tanto de homens quanto de mulheres. Nenhum lugar seria mais verdadeiro para contar a história de um escritor decadente do que no centro de Recife. Além disso, o filme é observacional, sobre os corpos e as faces. Queria retratar como os corpos existem nestes espaços decadentes. Tem um signo de exílio: a partir do momento que você não se identifica com o ideal de ganhar dinheiro a qualquer custo, ou quando você não tem o reconhecimento pelo que faz, são estes lugares para onde você vai. Eles se tornam um lugar de resistência, de certa forma. Além disso, o filme se passa em lugares reais. Muita gente me pergunta se a pensão do Raul era um cenário, mas são lugares verdadeiros. Aquela pensão é ocupada por pessoas semelhantes aos personagens do filme.
De fato, ficam na memória estes espaços sujos, escuros, corroídos, descascados. A Morte Habita à Noite é um filme com cheiro, com textura.
Isso é tudo real. Queria colocar o público dentro desses lugares. Apesar de o filme não ter tanto uma tônica política, existe o fato que um terço da população brasileira vive abaixo da linha da pobreza. Queria que o público sentisse esse cheiro, essa sujeira, onde milhões de brasileiros vivem de fato. Isso não é uma fantasia, e sim uma realidade brasileira nessas zonas mais centrais e boêmias da cidade. São os lugares que a gente aprende que não deveria entrar, que não pode andar à noite. É claro que, como isso vem da literatura, tem certo romantismo. Mas estes lugares também são românticos, por conta dessa existência.
Como discutiu com a direção de fotografia e de arte para captar estes aspectos?
A gente andou muito nestes lugares. Fizemos várias visitas. O diretor de fotografia, Marcelo Martins Santiago, fotografava as luzes naturais da noite mesmo, e era lindo. Se você visita este centro histórico, você vê tanto a sujeira e as rachaduras quanto a beleza do barroco antigo. Então este aspecto é meio natural, e a iluminação partiu disso. Talvez uma coisa ou outra tenha ficado com uma luz um pouco mais dura, com um ou outro excesso. Mas o ponto de partida era uma luz parecida com aquela luz noturna da cidade. Nesses centros, as luzes ainda são antigas, mais quentes. Tem uma atmosfera, um clima muito forte. Eu também tinha interesse, esteticamente falando, em explorar uma luz expressionista.
Queria que o público sentisse esse cheiro, essa sujeira, onde milhões de brasileiros vivem de fato. Isso não é uma fantasia.
Você filma os corpos de maneira despojada, com uma nudez tranquila. Mas o filme evita o sexo. São corpos cheios de potência, mas que não dão vazão a estas pulsões.
Vou ser bem sincero em relação a essa questão: o corte do roteiro ficou com mais de cinco horas. Tinham muitas cenas de sexo, principalmente na primeira parte, na relação do Raul com a Lígia. Mas na hora da montagem, com o Fred Benevides, conversamos muito sobre qual caminho a gente ia seguir. Era meu primeiro longa, e eu ainda não tinha essa noção. Depois, surgiram muitas opções possíveis na montagem. Chegamos à conclusão que não ficaria legal ter uma ou outra cena de sexo jogada. Talvez soasse artificial. Para ter alguma cena de sexo, seria preciso que o filme tomasse outro rumo, mas escolhemos este caminho mais contemporâneo. Já faz dez anos que eu escrevi o roteiro. A gente rodou em 2017, mas montou apenas em 2019. Pensamos então, com o Fred, qual tipo de filme tinha mais relação com os tempos de hoje. Decidimos por esse caminho, onde a história se torna mais sobre as mulheres do que sobre o Raul.
Você já exibiu o filme no Brasil e em Roterdã, por exemplo. Os espectadores lá fora tiveram a mesma compreensão deste centro histórico de Recife?
Em Roterdã, a recepção foi ótima. Tivemos três sessões, todas lotadas. Muita gente vinha falar comigo sobre o sentimento de compaixão que o filme despertava. Elas se identificavam com os personagens, e vinham falar sobre isso. Em geral, acharam que seria um filme muito pesado, devido ao tema, mas ficaram surpresos que o filme despertasse compaixão e afeto perante essas figuras. Roterdã faz um ranking dos filmes mais bem avaliados pelo público. A Morte Habita à Noite foi o segundo brasileiro com melhor nota, atrás apenas do Bacurau, claro. Senti que as pessoas gostaram. Nos festivais brasileiros, mostramos nos festivais de Ceará, do Rio, de BH. Tive um retorno parecido. As pessoas acham que vai ser pesado, mas encontram uma experiência relacionada ao amor, ao instante de vida desses personagens. Me falam muito também que gostam da maneira como o filme aborda questões humanas — até porque o fato de ser uma adaptação de Bukowski já traz algumas ideias prévias. Muitas críticas inclusive falam sobre isso: o aspecto feminino, e como o filme não cai numa armadilha de colocar uma visão mais pesada, do Bukowski mesmo.
Talvez a gente chegue ao filme contaminado por uma tradição de filmes de miséria espetacular, reforçando a criminalidade e fazendo denúncias políticas. Não é o caso do seu filme.
Nessa versão maior, acredito que o filme tivesse mais brasilidade. Tinham muitas participações das próprias figuras noturnas do Recife. Mas era preciso escolher um caminho, e a gente privilegiou a narrativa amorosa, dos encontros e acolhimentos. As cenas de mesa de bar, de praça e outras com figuras reais, que traziam esse ambiente mais marginal, tiravam o filme desse aspecto tão literário e traziam um caráter mais realista.
Tinham muitas participações das próprias figuras noturnas do Recife. Mas era preciso escolher um caminho, e a gente privilegiou a narrativa amorosa.
Você disse que começou o curta-metragem na busca de trabalhar mais com atores. De que maneira trabalhou novamente com o Roney Villela para este papel, e como preparou seu trio de atrizes?
A direção de atores tem muito a ver com os filmes do Cassavetes. Ele me influenciou muito no roteiro — não tanto na questão da linguagem. Ele é ótimo para estudar a escrita de diálogos, e o Bukowski também. O Cassavetes não necessariamente trabalhava em sala de ensaio. Ele tinha o objetivo de fazer amizade com os atores e criar uma intimidade. Ao invés de ir para a sala de ensaio e passar o texto, ele chamava a galera para o bar, para conversar. Aos poucos, introduzia a ideia do filme e dos personagens. Eu peguei isso como referência. Muito tempo antes de rodar o filme, eu chamava o Roney para conversar, para tomar uma cerveja. Aí a gente começava a falar do roteiro. Era uma maneira de incorporar o Roney ao filme. Conforme fui escolhendo as atrizes, fiz esses encontros também, para eles se conhecerem. Chamava o Roney e a Mariana em casa, para ver um filme e tomar um vinho, e eles foram criando uma relação de amizade. Muitos diálogos vêm das atrizes, na verdade: a Rita Carelli trouxe muitos diálogos, já que ela também é escritora. Então a trama foi criada em conjunto, porque todos eles são criadores. Foi mais a construção de uma intimidade e uma amizade com eles, ao invés de algo mais técnico.
Esses filmes que viam juntos eram referências para A Morte Habita à Noite?
Sim. Com a Mariana, a gente estudou muito Uma Mulher sob Influência, por exemplo. Queria que a personagem dela tivesse a energia da Gena Rowlands. Ela se identificou muito com o filme e com a Lígia. Essa primeira parte tinha que ser feita pela Mariana. O Roney é um ator com muita força e muita presença, e a Mariana tem a mesma característica. Precisava ser uma atriz como ela para essas forças ficarem equilibradas. Muitas pessoas ficam chateadas depois dessa primeira parte, quando mudam as personagens. Escutei muitos comentários de pessoas que queriam ver mais da Mariana em cena.
O filme estava pronto há alguns anos, mas chega ao cinema agora. Como foi este processo de lançamento?
Esse é um filme de orçamento muito baixo. Se eu falar o valor, você não vai acreditar em mim. Ele foi feito porque eu tinha um grupo de amigos, e pela amizade com esses atores e atrizes. O filme foi possível graças a essa reunião de parcerias. Isso explica o fato de ter passado tanto tempo até a estreia. Com um curta-metragem, muitas vezes você escreve o roteiro, junta os amigos, filma, e em questão de meses, já lança. É um ciclo mais rápido. Com o longa-metragem, você faz o roteiro, passa pelo processo de laboratórios, inscreve em editais… É um processo longo e lento. Nos últimos anos, a gente também viveu um período de turbulência política, de pandemia, que fez este tempo ser maior. Acho que a partir de agora, talvez volte um pouco mais à normalidade. Foi uma questão muito difícil para mim, psicologicamente, lidar com esse tempo. Você faz o roteiro em 2012, 2013, roda em 2017, e lança em 2022, e nesse tempo, vira outra pessoa. Isso é complexo, mas é um aprendizado grande sobre o formato do longa, e entender como ele funciona. É preciso gestionar aos poucos.
Com o meu segundo longa, eu não o considero fechado. É um projeto que estou escrevendo há três, quatro anos, e vou rodar ano que vem. Mas aprendi que não posso fechar esse roteiro: esse ano, estou reescrevendo, e vou fazer isso ano que vem, até filmar. Acho que é a melhor forma de lidar com o longa: nunca achar que ele está pronto. Ele precisa estar aberto às mudanças de moral, política, etc. Sobre o lançamento, a gente exibiu em Roterdã, voltou para o Brasil, mas precisou esperar a pandemia. O filme voltou para a nuvem. Achamos melhor esperar a questão da pandemia se resolver. Também tinha a questão de captação de recursos para o lançamento. Achamos essa data agora a mais propícia: a gente queria que fosse esse ano, para fechar o ciclo do filme.
A gente estudou muito Uma Mulher sob Influência. Queria que a personagem de Mariana Nunes tivesse a energia da Gena Rowlands.
Vamos encontrar nos Irmãos Caraíba uma estética semelhante?
Não, esteticamente, vai ser totalmente diferente! Sabe o filme Conta Comigo (1986), do Rob Reiner? Esse projeto tem um quê desse filme, que foi aquele que me despertou a vontade de fazer cinema. Eu assisti quando era adolescente, em Caruaru, na Sessão da Tarde. Fiquei fascinado, comovido. Decidi que queria ser roteirista, ou cineasta, para causar isso nas pessoas. Esse filme vai ser uma história de amizade, algo mais singelo e simples. O que me interessa é o sentimento dos personagens. Com A Morte Habita à Noite, queria um filme que fosse sobre a morte, sobre o expressionismo. Tinha uma questão estética importante para mim. Neste segundo filme, o mais importante é captar o sentimento desses personagens, dessa amizade. O legal é fazer experiências a partir do realismo, e cada filme pede uma abordagem diferente. Os personagens dizem muito sobre como você deve conduzir a direção. Esse novo filme tem outro tema: ele traz mais esperança. Existem pontos fortes de drama, mas é sobre como você pode encontrar alegrias, mesmo dentro de um ambiente opressor.