A Primeira Morte de Joana: “Cada mulher, dependendo de idade, religião e cor, tem lutas distintas”

O ano é 2007, no sul do Brasil. A adolescente Joana (Letícia Kacperski) presencia a morte pela primeira vez. Durante o funeral da tia-avó Rosa, a garota questiona os boatos de que a falecida nunca teria namorado. Por quê? Enquanto faz sua própria pesquisa a respeito da vida afetiva da mulher misteriosa, Joana experimenta o afeto e o desejo pela primeira vez, graças à amiga Carolina (Isabela Bressane), criada por pais progressistas. Em paralelo, a própria mãe de Joana, Lara (Joana Vieira), uma cozinheira rígida na educação da filha, experimenta o possível romance com um homem da região. A avó também possui seus namorados.

A Primeira Morte de Joana analisa a percepção do afeto e da autonomia feminina em três gerações de uma mesma família, numa região sulista de cultura germânica. Neste processo, questiona convenções num país em transformação política. Vencedor de três prêmios no Festival de Gramado (incluindo melhor filme segundo a crítica), o drama chega ao circuito comercial em 4 de maio, com distribuição da Lança Filmes.

O Meio Amargo conversou com a diretora Cristiane Oliveira e as atrizes Letícia Kacperski, Isabela Bressane e Joana Vieira:

Inspirado em uma história real

A cineasta explica que a premissa partiu de uma história verídica, combinada com vivências pessoais:

“O ano de 2007 marcou a conclusão de um grande parque eólico”, pontua Oliveira. “Isso começou em 2005, próximo de Osório, onde eu nasci e cresci. Eu passava muito por ali, e via a paisagem se transformando nesse processo. O parque foi para lá pela constância do vento. Isso sempre mexeu comigo: a forma como a tecnologia transforma as culturas locais. Isso se conectou muito com uma história que eu já queria contar. Ainda não era situada numa paisagem assim, mas comecei a escrever o roteiro sobre uma pessoa que conheci. Era uma senhora que faleceu virgem aos 70 anos, sem nunca ter namorado alguém. Já queria escrever a história de uma sobrinha-neta adolescente se relacionando com essa tia”.

“Essas duas questões se conectaram”, ela continua. “São duas forças, o vento como uma força natural, e a menina aprendendo a manejar essa força do afeto, que não conseguimos controlar. Essa região do país, coincidentemente, foi onde vi pela primeira vez na vida um corpo sendo velado em caixão aberto, na sala de casa. Era uma pessoa muito próxima da minha família. Quando trouxe esse corpo para a história, percebi que precisava ser naquela região. Pesquisando mais o local, descobri a cultura germânica muito forte, e isso fechou tudo. Já me impactava a força do quilombo ali perto, onde filmamos, e a cultura afrodescendente. A prefeitura de Osório assume para si uma festividade afrodescendente, inserida no calendário da cidade. Isso também se deve à minha história: eu cresci numa família de mulheres, e esse trânsito pelas religiões aconteceu comigo. Quando cheguei lá, e além da umbanda e do catolicismo, eu encontro os luteranos, pensei que seria um tripé interessante para situar a trama”.

Roteiro criado coletivamente

Ao contrário de uma direção controladora, quando o texto definitivo é passado aos atores, a quem se espera uma adesão fiel, a cineasta preferiu um método colaborativo, valorizando o ponto de vista das jovens atrizes:

“O processo foi longo”, relembra a jovem Letícia Kacperski a respeito da filmagem ocorrida anos atrás. Ela interpreta o papel principal no drama.“Eu fazia chamadas de WhatsApp com a Cris, e a gente discutia a história. Não lemos nada, mas ela me explicava, e eu fazia anotações à minha maneira. Durante as gravações, e antes dela, a gente tinha a liberdade de dizer: ‘Não seria melhor a Joana falar isso desta forma?’, ‘E se ela também falasse assim?’. A Cris recebeu muito bem todas essas ideias. Foi algo combinado entre todas, de maneira bem coletiva. Isso foi importante para não ficar artificial na hora de filmar”.

Isabela Bressane, intérprete de Carolina, melhor amiga da protagonista, recorda o processo com carinho: “Nossos pais tiveram uma participação nisso, porque receberam o roteiro antes mesmo de nós, para conhecerem a história. Com a gente, o processo começou aos poucos. A Cris nos contava um pouco da história, e a gente dizia como parecia natural conversar a respeito. Quando chegou na hora da filmagem, todo mundo já conhecia bem a história. Ela se tornou nossa também, o que facilitou bastante. Não foi apenas decorado, isso também veio de dentro da gente”.

“Aprendi muito com as duas gurias”, confirma Joana Vieira, que encarna a mãe de Joana. “Teve uma grande sensibilidade da Cris para montar as famílias. Eu confiei muito no processo. Mudei o cabelo, adotei o corpo mais rígido e mais pesado da Lara. Tivemos ensaios e leituras para nos aproximar dos personagens por camadas. Tiveram cenas passadas com o Emílio Speck, teve o momento quando chegamos na casa pela primeira vez, a espera dentro no set no dia anterior à filmagem, a convivência com as mães das meninas, que acompanharam cada diária… Eu não sou mãe, então queria me aproximar deste olhar. As gurias tinham um brilho, a euforia de estar fazendo um filme pela primeira vez. Este também foi o primeiro personagem que eu tive mais tempo para aprofundar. A Cris nos colocava em situações para a gente se aprofundar fisicamente, aos poucos. Então nascia na hora do ‘ação'”.

Mulheres contraditórias?

Ao invés de imaginar personagens representantes do conservadorismo ou do progressismo típicos de um Brasil polarizado, o roteiro de Oliveira e Silvia Lourenço desenha figuras mais complexas. A mãe Lara acredita existirem “coisas de menino” e “coisas de menina”, estabelecendo uma barreira que a filha jamais deveria ultrapassar. No entanto, é ela quem frequenta os terreiros de umbanda, apesar das raízes cristãs da família. Já a avó desaprova o contato com religiões de matriz africana, embora seja a pessoa mais sexualmente libertária da casa.

“Talvez não sejam contradições”, pondera a diretora. “Essa é a beleza do amadurecer: perceber que as pessoas são únicas. Cada mulher, dependendo do recorte de idade, religião, cor, tem lutas distintas. Mesmo que exista algo que nos una historicamente na luta por igualdade e direito, dependendo de sua classe ou origem, isso impacta de maneira diferente. Essa é a dificuldade quando estamos crescendo: como compreender a luta do outro? Como respeitar e acolher o outro? É um olhar interseccional. O filme nos levou a uma pesquisa sobre juventude; não partimos apenas de nossas experiências pessoais. Em 2012, descobri o sistema de ensino na Suécia, que estava sendo implantado naquela época. Havia a neutralidade de gênero como base para discutir sentimentos, e isso se traduzia nos jogos, nos bonequinhos. Não havia brinquedo de menino ou de menina, jogo de menino ou de menina. Eu também pensava assim. Era assim que eu me sentia quando criança! Senti que precisava escrever esse filme”.

Surpreendentemente, A Primeira Morte de Joana nem sempre foi concebido como um longa-metragem. “No começo, pensei que seria um curta”, confirma Oliveira. “Escrevi a base, mostrei para uma amiga que me disse que havia elementos demais ali. Então investi mais para ver se virava um longa-metragem. Na pesquisa sobre a juventude, havia o conceito de cidadania íntima, que emprestamos da sociologia. É o fato de reconhecer os seus direitos e deveres na relação com os direitos e deveres do outro. Assim, entendemos que a cultura, e onde estamos inseridos, interfere na forma como recebemos essas caixinhas em que nos colocamos. Conversando com as meninas do filme, percebi que elas pertencem a uma geração que já está falando mais abertamente sobre tudo isso. Elas lidam com estes temas de forma mais inclusiva. Este é o nosso processo de entender as complexidades um do outro. Esta também é a busca da Joana, escutando e perguntando para assimilar o que existe ao redor dela”.

Joana Vieira comenta, a respeito de sua personagem:

“A Lara se incomoda com os movimentos da Joana. Ela quer controlar, continuar sendo a mulher que sustenta a casa, mantendo o padrão de antes. Ela tem um pensamento conectado ao que os outros vão pensar. Eu mesma, interpretando a Lara, sentia o sufoco, a dificuldade de dizer tudo o que ela dizia. Ao mesmo tempo, precisava me aproximar, sem julgamentos, questionando minhas barreiras internas. Eu lia o roteiro e pensava: ‘Como assim, ela diz que isso é coisa de guri, isso é coisa de guria?’. A gente cresce ouvindo isso, e dependendo do nosso meio, com quem conversamos e como vivemos, acabamos reproduzindo esse pensamento”.

O Brasil evoluiu em 2023?

A distância entre o período de 2007 e o Brasil atual permite questionar se este retrato de gerações se transformou depois da ascensão da extrema-direita, do golpe de 2016, da eleição de Bolsonaro, das fake news… As mulheres conquistaram novos direitos, novos passos rumo à igualdade de gêneros? O debate acerca das sexualidades atingiu outro patamar?

“O preconceito está completamente enraizado”, acredita Kacperski. “A nossa preocupação está em combater isso — pelo menos na minha experiência pessoal. Mas ninguém é super-herói: esse vai ser um processo longo. Isso esteve muito presente nas pessoas de uma geração anterior, e também nas comunidades do interior. Em 2007, ainda se falava muito na importância do trabalho, o que justificava serem tão rígidos. Tudo isso se junta, e percebemos o impacto até hoje. É ótimo que tenha ocorrido uma mudança evidente, mas o preconceito continua aí, e não podemos ignorar”.

Bressane completa: “O filme abre porta para esse debate: por que ainda existem coisas reservadas para meninas e para meninos? Essa separação não deveria existir. A história se passa no interior do Rio Grande do Sul. Eu também venho do interior, de uma cidade afastada da capital de Santa Catarina. Não é uma cidade grande. Ali eu percebo algo que não existia com tanta força quando morei em Porto Alegre. Na escola, por exemplo, a educação física separa meninos de meninas. Por quê? Os meninos seriam mais fortes que as meninas? É apenas uma construção social”.

“Os assuntos sobre os quais podemos conversar mudaram em 2023”, estima Joana Vieira. “Antes existia uma insegurança de conversar sobre tabus relacionados às mulheres. Tivemos um período de retrocesso, quando não dava para expandir a discussão. Eu lembro muito da minha infância quando vejo a Joana. Venho do interior, e conversando com as meninas no set, fico impressionada com as mudanças imensas ano após ano, e fico feliz com isso. Coisas que eram pesadas para mim, se tornaram naturais para elas. Elas têm amigos trans, têm amigos gays. Existe um lado muito bom nisso tudo, apesar de serem temas que precisamos continuar falando, para impedir os preconceitos. Nesta família do filme, as figuras masculinas apenas rondam os espaços, apesar de serem três mulheres nos papéis principais. É um filme para ser discutido por todas as faixas etárias, porque fala do ser humano”.

Cristiane Oliveira insere o debate numa perspectiva institucional: “Existe uma parcela da população ainda educada de outra forma, e se debatendo com estes novos conceitos — vide o projeto Escola Sem Partido, que, na verdade, é o projeto de escola de um partido só. Ele quer impor que não se fale da diversidade religiosa, de gênero e sexualidade nas escolas. Mas para cada faixa etária, há um conhecimento adequado a transmitir no que diz respeito ao conhecimento do corpo, da saúde, do respeito, dos afetos. Por isso se fala sobre educação integral sobre a sexualidade. Não podemos esperar completar a maioridade para dizer o que se pode ou não pode fazer. Precisamos integrar várias formas do conhecimento para dizer que somos parte de um todo. Agora, esperamos que isso possa ser discutido. Tivemos avanço até o governo Dilma, e depois sofremos uma baixa no projeto de educação. Existe uma confusão, como se a diversidade fosse uma ameaça aos valores tradicionais. Mas se a gente não dá informação, apenas favorecemos a violência. Gostaria que as pessoas apegadas a valores conservadores percebessem que podemos caminhar juntos no sentido de prevenir a violência contra crianças, através da informação. Nós já avançamos, mas isso precisa ser sistematizado e ampliado”.

Filme adolescente com censura 14 anos?

A Primeira Morte de Joana foi selecionado em mais de 40 festivais pelo mundo, sendo premiado nos Estados Unidos, Argentina e Espanha. A resposta foi bastante positiva pela crítica e pelo público:

“Eu cheguei a ir para a Índia com o filme”, lembra Isabela Bressane. “A cultura deles é totalmente diferente daquilo que a gente está acostumado. Mesmo assim, no final eles vinham dizer que se identificavam com o filme. Disseram que não tinham a liberdade de assumir o que realmente eram, mas que conseguiam enxergar a história deles na nossa. Essa foi a primeira vez que eu assisti ao filme, e os primeiros feedbacks que tive foram muito positivos”.

Apesar de não ter viajado com o drama, Kacperski acompanhou o retorno do público: “A gente teve bastante feedback dos festivais de fora, traduzidos ao português, e dei uma olhada no que as pessoas publicaram no Letterboxd. Todas as opiniões são bem-vindas, contanto que com respeito. E participamos de entrevistas com veículos de imprensa fora do Brasil. Assim, a gente teve o reconhecimento da importância do filme lá fora”.

Embora o acolhimento tenha sido positivo, e a representação da sexualidade seja bastante respeitosa e contida, a diretora se espantou com a classificação etária do projeto em seu lançamento no Brasil:

“Eu tinha vontade de dialogar com os jovens, e fora do Brasil, isso funcionou muito bem. A Primeira Morte de Joana foi selecionado em vários festivais dedicados ao conteúdo infantojuvenil. Ele foi lançado comercialmente na França com censura livre, aprovado para todas as idades. Agora, no Brasil, recebeu a classificação 14 anos. Ou seja, ninguém abaixo dessa idade deve ver o filme. Isso é muito duro; é um reflexo da condição social do nosso país. São quatorze anos de atraso no acesso a determinadas informações que os jovens sofrem. Está previsto na cartilha da classificação etária que qualquer filme com cena de sexo terá, pelo menos, indicação para 14 anos, mas nós não mostramos a cena de sexo. Ela é apenas sugerida. Mesmo assim, isso pesou na decisão deles”.

Questionada sobre a inexplicável decisão do ministério em relação à classificação etária, Oliveira completa: “Outros elementos foram citados, como a presença de drogas ilícitas. Existe ali, de fundo, dois meninos fumando. Também há o fato de se levantar a questão sobre a homossexualidade entre jovens, sem chegar a uma explicação didática a respeito. Mas os jovens conversam entre eles. Eles dizem, rebatem, então na linguagem deles, está tudo resolvido. Essa classificação veio do ministério no ano passado. Não sei se poderia ter algum tipo de recurso ou apelo, mas muita coisa precisa ser discutida no nosso país ainda, para mudar o acesso à informação aos jovens”.

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.