Já está em cartaz nos cinemas a raríssima oportunidade de assistir a um curta-metragem brasileiro no circuito comercial, no caso, o grande vencedor do Festival de Locarno 2022: Fantasma Neon, de Leonardo Martinelli. O celebrado curta-metragista propõe um drama musical com toques de fantasia, a partir da história de entregadores por aplicativo que declamam a precariedade do seu trabalho em composições em samba, funk e bossa nova, pelas ruas do centro do Rio de Janeiro.
O filme não é exibido sozinho: ele forma uma sessão dupla com o excelente Fogo Fátuo, de João Pedro Rodrigues, outra fantasia musical com temática queer. No caso da obra brasileira, Dennis Pinheiro e Silvero Pereira encarnam dois entregadores com um passado romântico em comum, tentando fazer planos para o futuro juntos enquanto precisam lidar com clientes mal-educados e os perigos das entregas durante a pandemia de Covid-19.
Em entrevista ao Meio Amargo, o diretor carioca explicou suas referências, o símbolo de um fantasma literalmente neon, e a situação atual do cinema brasileiro durante um novo governo:
Como montou este musical muito particular, que vai da bossa nova ao passinho?
Leonardo Martinelli: Eu sempre fui muito apaixonado pelo gênero musical, que costuma ser subestimado por cinéfilos e não-cinéfilos. Algumas pessoas têm visões restritas do que o musical é, ou pode ser. Mas é um gênero capaz de muitas coisas, embora tenha caído muito em volume de produção, comparado com o que houve nos anos 1950 e 1960. Existem poucos musicais no Brasil, infelizmente. Apesar disso, eu diria que o Brasil produz os melhores artistas musicais do mundo — mesmo sabendo que sou um pouco enviesado, claro. Como a gente tem uma diversidade enorme de gênero e formas musicais, fazia sentido desenvolver um musical aqui. Então eu uni essas duas paixões, tanto pela música brasileira, o que inclui bossa nova, funk carioca e MPB, quanto pelo cinema musical, pegando referências de Jacques Demy, Bob Fosse, Vincent Minnelli.
Você parte da temática dos entregadores por aplicativo, dançando com suas mochilas nas costas. Como chegou àquelas pessoas? Imagino que algumas sejam entregadoras de fato.
Leonardo Martinelli: Nosso curta-metragem foi viabilizado através da primeira edição da Lei Aldir Blanc. Foi um pequeno aporte emergencial para artistas, através do município do Rio de Janeiro. Imaginamos então uma obra de múltiplas abordagens, o que incluía não apenas um curta-metragem, mas também oficinas de produção audiovisual com entregadores de aplicativo interessados neste universo. Quando recebemos o aporte, criamos a chamada para entregadores interessados no universo da arte, tendo ou não experiência prévia. A partir disso, o nosso montador, o Lobo Mauro, realizou esta oficina com os entregadores. Das pessoas que participaram, todas foram convidadas a participar do filme, no elenco, ou fazendo figuração especial. Quem preferiu participar atrás das câmeras (por não querer estar em frente às câmeras, necessariamente), acabou contribuindo em funções de assistência, making of, fotografia. Tivemos estes diálogos com os inscritos, e depois os trouxemos ao filme de alguma forma.
As experiências pessoais deles foram incorporadas ao roteiro? O filme traz muitas relações abusivas de raça e classe entre entregadores e consumidores.
Leonardo Martinelli: É um misto, com certeza. No início do filme, a gente tem a cena híbrida, com rostos de atores e entregadores de aplicativo. Apesar de a narrativa ser contada por atores experientes, as histórias representadas por eles são reais, misturando elementos de coisas que eles vivenciaram. Então o filme se propõe a ficcionalizar coisas que realmente aconteceram com eles.
O curta se situa principalmente nas ruas do Rio de Janeiro, mas em determinado momento, passa de maneira fantástica aos palcos de um teatro. Qual era a importância de oficializar o musical neste cenário mais tradicional, digamos?
Leonardo Martinelli: O teatro traz um peso simbólico de colocar o personagem nesse holofote, em destaque. É o único momento no qual o Dennis, o protagonista, tira a mochila. Ele sobe ao palco e retira esse fardo simbólico do trabalho dele. Mas logo depois dessa sequência, ele é levado de volta à realidade. Nesse sentido, o teatro entra como espaço simbólico representando o que estes entregadores querem, além do trabalho. É lá que ele se encontra com o personagem do Silvero; é lá que ele resgata a dança com um amor passado. O teatro traz aquilo que os personagens querem e são, para além do trabalho.
O próprio fantasma é bastante singular. Ele surge de efeitos visuais discretos, gerando uma criatura mais protetora do que assustadora.
Leonardo Martinelli: No sentido técnico, o fantasma foi feito pelo Sávio Fernandes, um cineasta talentosíssimo, e artista de efeitos visuais. A gente construiu juntos essa abordagem do fantasma transparente, holográfico, neon. Sobre o significado dele, não gosto de restringir a leitura, porque é um dos elementos que gera o maior número de interpretações, algo que considero muito positivo. Mas algumas das intenções vieram desse encontro de gêneros: temos o musical, que costuma dar muito destaque aos personagens, cantando e dançando pela cidade. Ao mesmo tempo, são entregadores de aplicativo, que sofrem emblematicamente de uma invisibilização simbólica. Neste sentido, surge a ideia de um fantasma neon, um entregador de aplicativo inserido num musical. Seria uma maneira de destacar pessoas que sofrem essa invisibilização tão grande. A presença do fantasma traz essas diversas leituras. O protagonista sofre um acidente, e poderia ser ele mesmo, o fantasma. Mas também poderia ser uma companhia, ao invés de uma assombração.
O texto faz menções diretas à Covid-19 e ao período de isolamento. Mas o filme chega ao cinema em tempos pós-pandêmicos. Como vê a maneira como enxergamos, agora, este passado recente?
Leonardo Martinelli: Esse trauma coletivo da pandemia ainda é muito recente. Daqui a décadas, vamos olhar para trás e entender melhor como tratamos este fenômeno na mídia e nas artes. Apesar da ideia do projeto nascer antes da pandemia, quando já havia o sucateamento dos direitos dos trabalhadores, a Covid veio como um tsunami que tornou a situação destes entregadores ainda mais precária. Agora, quando olhamos para trás, começamos a tratar as sequelas de um passado recente cuja dimensão a gente ainda não entendeu por completo.
Você tem a oportunidade raríssima de lançar um curta-metragem no circuito comercial, junto a Fogo Fátuo. Como percebe esta experiência, e a comunicação entre ambos os filmes?
Leonardo Martinelli: Primeiro, preciso agradecer à Vitrine Filmes pela oportunidade linda de exibir um curta antes de um longa, o que é algo muito especial. E não apenas um curta, mas um curta brasileiro, em live action, porque estamos mais acostumados a ver as animações de grandes estúdios. Ter um curta brasileiro autoral neste espaço é algo muito bonito. Isso também vem da feliz coincidência de Fantasma Neon ter afinidades para ser programado junto ao Fogo Fátuo, do João Pedro Rodrigues, um cineasta que eu admiro muito. Isso vem tanto da duração dos dois filmes — o curta-metragem tem 20 minutos, e o longa, apenas 60 minutos —, quanto pela proximidade temática. Fogo Fátuo também é um musical de temática queer. Foi um casamento muito especial, uma oportunidade rara.
O que este filme representa na sua trajetória? Ele é bastante diferente dos seus curtas anteriores, como Copacabana Madureira e O Prazer de Matar Insetos.
Leonardo Martinelli: A maior diferença material do Fantasma Neon, em relação aos filmes anteriores, é o fato de ter sido feito com recursos. Todos os precedentes foram autofinanciados, com orçamentos extremamente modestos (menos de R$ 2 mil cada um), filmados com uma câmera própria, quase amadora, e uma equipe de amigos — embora também sejam excelentes profissionais do audiovisual, claro. Fantasma Neon teve um orçamento modesto, mas já era uma grande diferença em relação às experiências anteriores. Pela primeira vez, pude planejar uma decupagem mais detalhada, e então realizar com calma. Pude trazer um ator com quem já queria trabalhar, e também incorporar uma trilha sonora original. Minha filmografia tem essa consonância no sentido de pensar a cidade do Rio de Janeiro, sua iconografia e os personagens inseridos nela. Os microcosmos de cada curta podem representar, juntos, algo maior ou endêmico do Rio de Janeiro. É uma tentativa de investigar essas situações. Fantasma Neon se insere neste percurso ao trazer uma linha ficcional, narrativa, talvez mais tradicional, mas sem abandonar a experimentação, devido ao gênero híbrido e ao musical.
Agora estamos num momento de redefinição da produção e distribuição do audiovisual, especialmente com este governo novo. Como enxerga o momento atual para filmes independentes?
Leonardo Martinelli: Uma das coisas desesperadoras das duas últimas gestões precedentes à atual era o corte muito rápido de programas de apoio e fomento. Isso ocorreu com uma canetada, imediatamente. Mas a construção de um programa de apoio, de um edital, de uma lei de financiamento, é algo muito lento, muito burocrático. Por isso foi tão desesperador. Agora, lentamente, vamos ter que reconstruir este sistema de apoio. Ainda há muito trabalho pela frente, mas pelo menos voltamos a um direcionamento que valoriza a cultura do próprio país.