O circuito brasileiro traz, em agosto, um dos filmes nacionais mais bonitos de 2022: Marte Um, drama escrito e dirigido por Gabriel Martins (de No Coração do Mundo). O cineasta mineiro narra a história de quatro membros de uma família trabalhadora das periferias de Minas Gerais, com sonhos distintos. O garoto Deivinho (Cícero Lucas) gostaria de integrar a missão espacial que vai a Marte, enquanto sua irmã (Camilla Damião) pensa em levar uma vida independente junto à namorada. Para o pai (Carlos Francisco), o desejo seria a estabilidade financeira e a resiliência contra o antigo vício em álcool, ao passo que para a mãe (Rejane Faria), o objetivo se encontra na autonomia dentro do núcleo familiar.
Marte Um foi muito bem recebido no Festival de Sundance, e recebeu diversos prêmios no Festival de Gramado. O Meio Amargo conversou com Martins a respeito dos desafios desta nova obra. Assista à crítica em vídeo do filme e, abaixo, à conversa com o cineasta:
Por que quis contar a história de um garoto que não apenas gostaria de ir para Marte, mas ficar lá e não voltar mais?
Esse filme nasce próximo da época da Copa do Mundo no Brasil, em 2014. Ele vem do desejo de falar de futebol, de crise de identidade. É um momento de turbulência política no país, com todo mundo tentando entender o que significa ser brasileiro, o que significa estar de um lado ou outro do espectro político. O filme se desenvolve nessa temperatura. Pensei nesse menino que mora numa periferia que quase ninguém conhece, num bairro de uma cidade que quase ninguém conhece. Esse era o meu caso. Ele tem um sonho muito distante, de ir e não voltar: é a ideia de um futuro irreversível. É menos um gesto físico da partida para outro planeta, do que a noção de um futuro que não pode ser retirado. Consigo visualizar esse sonho como uma ideia mais ampla, a utopia diante de uma negritude com a qual me reconheci ao longo do tempo. Penso no que eu sonho para o povo brasileiro trabalhador, representado no filme. O que eu sonho para pessoas negras? Isso não tem limites. Precisamos ter uma sensação maior e mais ampla do que podemos ser. Este é o lugar do Deivinho.
Esse menino tem um sonho muito distante, de ir e não voltar: é a ideia de um futuro irreversível.
O título pode despertar a impressão de que a história será contada apenas pelo Deivinho, como protagonista. Mas você retoma o filme coral, com vários protagonistas, a exemplo de No Coração do Mundo. O que te interessa nessa estrutura?
Essa estrutura diz respeito a pensar a família como um organismo vivo, dividido entre os quatro membros. Eles se afastam, se aproximam, se complementam em suas questões e inseguranças. No fim das contas, a gente pode viver o processo de comunhão deste encontro. Assim, é possível desmembrar o sonho que parte do Deivinho e diz respeito a algo maior, que atinge toda a família. Entre No Coração do Mundo e esse filme, a gente vai reduzindo, contando a história de menos personagens. Talvez meu próximo filme seja a história de um personagem só, porque é cansativo o trabalho de escrita e montagem com esse repertório imenso de personagens. Mas eu via Marte Um como quatro linhas paralelas, representando um organismo vivo e único.
O filme é bastante político, ainda que não seja sobre política. Existe o personagem fundamental do Flávio, um revolucionário anárquico. Como quis posicionar os quatro membros dessa família politicamente em relação ao momento narrado no filme, de posse do Bolsonaro?
Senti que essa política poderia atravessar o filme de maneira sutil, e que o recado poderia ser dado sem que todas as palavras fossem enunciadas. Isso faz parte da natureza do projeto, que foi escrito muito antes do Bolsonaro. Tenho a sensação de uma atmosfera política, sem a necessidade de esfregar na cara do espectador alguma mensagem específica. A existência dessa família, e as situações pelas quais eles passam, automaticamente demandam um deslocamento do espectador para compreender a mensagem de afeto. O afeto me parece radical diante do cinismo em que vivemos. É um filme otimista e esperançoso diante de um deserto em que tudo parece negativo, não apenas pelo que esse governo proporciona para a gente, mas pelo que devolvemos em relação a isso. A gente já acorda com o jornal de manhã, e sente ódio pelo que está acontecendo. Temos um sentimento muito pesado hoje. Marte Um quer devolver um afeto atento. Não é um afeto ingênuo. Ele é ciente das coisas que estão acontecendo, das diferenças entre pessoas, incluindo as diferenças de opinião. Mas no final, o afeto e a esperança precisam prevalecer, senão, restam só as trevas. Esse é o movimento político que o filme faz.
Marte Um quer devolver um afeto atento. Não é um afeto ingênuo. Ele é ciente das coisas que estão acontecendo.
O seu trabalho com atores deixa claro que existe um roteiro preciso, mas também uma abertura à espontaneidade. Como trabalhou com o elenco?
Esse trabalho parte de um estudo muito minucioso do roteiro. A sensação de espontaneidade vem de algum improviso, e de uma construção dos atores que, entre uma fala e outra, têm a possibilidade de dar mais voltas. Eu aprecio esta forma de direção de atores. Quando vou ao trabalho de montagem, posso acertar esses ponteiros. Parte da atuação é construída na hora pelos atores, mas parte disso vem da montagem, costurando essas cordas. Todos atores têm a oportunidade de serem livres, espontâneos, depois o trabalho vai ganhando uma forma mais dramática conforme vai chegando o produto final.
Gosto de dizer que tem uma sensação orgânica muito forte, mas por trás, o processo é bastante técnico e manipulado, em termos de atuação, escrita de roteiro e montagem. Isso fabrica um resultado de espontaneidade, mas ainda é cinema, essa arte de inventar e construir. Tem dublagem no meio, por exemplo. Não parece quando a gente vê o resultado, mas isso parte de uma construção artificial. Falo no melhor sentido, porque o cinema é isso mesmo, uma construção ficcional. Este é um filme de ficção, mas a gente se comunica com os atores para eles encontrarem um ponto comum entre suas personalidades próprias e aquilo que acreditam que os personagens devam ser. Nisso, todo mundo fica mais à vontade. Por isso, a atuação fica mais orgânica.
A ideia de ir para Marte sugere um componente de fantasia, assim como a mulher que atrai catástrofes. Por que quis inserir elementos de realismo fantástico?
Eu gosto muito do que o cinema ativa na gente, mas também a literatura e toda arte que se debruça sobre o desconhecido. Isso ativa um sentimento de deslocamento, de uma realidade dura e concreta que dá espaço a sentimentos duros e ambíguos, e bastante interessantes. A narrativa da Tércia, que traz o elemento da catástrofe, é tragicômica. Isso beira os limites da comédia: é para rir? Não é para rir? Ao mesmo tempo, é triste, tem um componente de depressão, de pós-traumático. Trazer um mistério, com perguntas abertas e um sentimento de ficção mais ampla, não necessariamente ancorado no realismo e na verossimilhança, é algo muito rico. Isso amplifica as possibilidades do gênero do filme. Este é um drama que recorre a gestos do filme de horror, de ação. Isso amplia a possibilidade de atmosferas do filme. Existe uma questão de atmosfera que faz a gente deslocar esse sentido espacial, da sexualidade da Eunice, para sensações mais etéreas. Isso não fica no plano apenas do realismo, e flerta inclusive com o melodrama e outras possibilidades de narrar a ficção.
Este é um drama que recorre a gestos do filme de horror, de ação. Isso amplia a possibilidade de atmosferas do filme.
A trilha sonora evita as redundâncias ou apelos emocionais. O tema de Marte Um é pontual. Como concebeu a função dessa trilha na história?
A trilha sonora foi um processo que chegou em fase avançada da montagem. Eu ainda não tinha entendido quem faria essa trilha, e então apareceu o Daniel Simitan, um cara muito talentoso de Londrina. Ele tem acesso a uma pequena orquestra, e tinha muita vontade de trabalhar com a gente. Inicialmente, eu tinha provocado algo que trouxesse uma sensação de espaço e pudesse adensar a emoção de algumas cenas. Queria ter a trilha sonora como suporte emocional, capaz de jogar o sentimento para algo mais profundo, quase existencial. Os cortes de violoncelo chegam junto a um piano sutil.
Queria que existisse um tema recorrente, porque isso é algo meio John Williams, que eu gosto muito. Isso cabia neste filme. Quando o Daniel compõe, eu fico até desconcertado. Tive dúvidas: ao mesmo tempo que a trilha me trazia muita emoção, eu achei que ela era muito presente, e conduzia bastante as cenas. Fiquei me perguntando se precisaria ser mais sutil. Ao mesmo tempo, a trilha me pegava por um lado menos racional do que emocional. Me rendi a esse trabalho dele, e no final, a trilha virou algo fundamental ao filme. Ela impacta e não tem vergonha de acessar um lado da narrativa clássica, melodramática. O som tem esse lugar de trazer para um espaço das emoções. Daniel traduziu isso com instrumentos. Achei belíssimo.
A distribuidora tem anunciado Marte Um como um dos candidatos mais fortes a representar o Brasil no Oscar. Isso é algo importante para você?
É louco, porque essa especulação é algo bem recente. Até poucos dias ou semanas atrás, eu sequer pensava nisso. No Festival de Gramado começou essa movimentação. Olha, existem muitos filmes brasileiros bem interessantes. O nosso filme, olhando de maneira bem pragmática, teve uma boa visibilidade nos Estados Unidos. Quando a gente fala de Oscar, é algo bem pragmático: é preciso atingir um mercado, e saber que se trata de um prêmio americano, ainda que composto por votantes do mundo inteiro. A comissão e a força de decisão estão nos Estados Unidos. Caso a gente venha a ser selecionado, é óbvio que vai ser incrível. Isso poderia dar visibilidade a um filme muito independente.
Dentro do panorama brasileiro, é um filme modesto, de baixo orçamento, de uma produtora periférica, de estrutura pequena. Se esta escolha trouxer maior atenção ao filme, vai ser uma grande vitória. O nosso desejo é de amplificar o acesso das pessoas, para que possam ver o filme. O mérito que o filme cava com suas próprias mãos, porque as pessoas vão gostando do filme, acaba por abrir portas que a gente não conseguiria abrir de outras formas. A gente tem parcerias maravilhosas, mas, na prática, não temos uma máquina realmente muito forte a nosso favor. Qualquer oportunidade que venha a nosso favor será muito bem-vinda.
Quando eu vou com Marte Um para Sundance, eu carrego o cinema brasileiro junto. Carrego uma imagem, uma potência.
Esse momento de Brasil e de políticas públicas é muito diferente daquele que marcou a estreia de No Coração do Mundo. Como compara as experiências de lançamento dos dois filmes?
É um sentimento agridoce. Quando a gente lançou No Coração do Mundo, em 2019, já estava numa decaída. Foi o começo do governo Bolsonaro, com o processo de aniquilação completa do cinema. Marte Um vem num momento quase pós-apocalíptico, em termos de Ancine. Ao mesmo tempo, ele surge com uma carga forte de renovação e de esperança que, num ano de eleição, a gente possa fazer uma boa escolha para reverter alguns desses processos. É a esperança de resgatar a imagem do cinema brasileiro. A gente vê uma Ancine completamente destruída, o que impacta inclusive o lançamento de Marte Um. Temos zero apoio para viagens internacionais, o que significa que o elenco não pôde viajar comigo, eu não pude viajar para vários festivais.
Quando a gente vê na prática o que o desgoverno provoca na cultura de um país, é isso: ele vai minando pontes e possibilidades de contato que não amplificam só para mim. Quando eu vou com Marte Um para Sundance, eu carrego o cinema brasileiro junto. Carrego uma imagem, uma potência. Vejo muitas pessoas que ainda não conhecem o cinema brasileiro. Algumas pessoas viram Marte Um e me disseram: “Nossa, preciso pesquisar mais o cinema brasileiro. Preciso ver mais filmes”. Um filme, de qualquer pessoa que seja, vai trazendo uma cinematografia junto. O sentimento que tenho agora, passado o que aconteceu com todos nós, é muito triste, mas, ao mesmo tempo, temos a necessidade de trazer combustível para reverter esse processo nas próximas eleições, e ter, a partir de 2023, um cenário diferente. Vai demorar muito para a gente resgatar e voltar a momentos que foram mais interessantes, mas tenho esperança de que vamos chegar lá, filme a filme. Vamos reconstruindo o espaço, e vamos fazer algo inclusive melhor do que já era antes.