Nesta quinta-feira, 4 de agosto, chega aos cinemas o documentário Quem Tem Medo?, dirigido por Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr. Acostumado a transitar entre o cinema e o teatro, o trio efetua um panorama sobre os casos de censura e perseguição a criadores, especialmente no teatro e na performance.
Eles se focam no crescimento desta retórica da violência durante o governo Bolsonaro, quando Wagner Schwartz sofreu ameaças de morte após uma criança tocar seu pé em La Bête; a atriz Renata Carvalho foi perseguida pela peça O Espetáculo Segundo Jesus, Rainha do Céu e José Neto Barbosa levou pedradas durante uma apresentação de A Mulher Monstro, entre outros. Os depoimentos dos artistas são intercalados com a fala de deputados evangélicos, sugerindo a morte e espancamento destes realizadores em nome da “liberdade de expressão”.
O Meio Amargo conversou com Ricardo Alves Jr. a respeito desta estreia, distribuída nos cinemas pela Embaúba Filmes:
Quando você, Dellani Lima e Henrique Zanoni perceberam que os casos de censura poderiam servir de material a um longa-metragem?
Na verdade, o projeto se inicia com o Dellani. Ele estava fazendo outro filme com a Motosserra Perfumada, o grupo que faz o último espetáculo apresentado no documentário. Durante o processo de filmagens, eles foram censurados pela Funarte, como o Biagio Pecorelli conta no filme. Naquele momento, o Dellani entrou em contato comigo e o Henrique para contar o que estava acontecendo com eles. Nós três sempre fomos muito próximos, e já tínhamos conversado sobre a perseguição à arte no governo Bolsonaro. A gente discutia a ascensão da extrema-direita, com essa lenda de que artistas mamam na Lei Rouanet. Pensamos então em fazer um filme a respeito.
Poucos meses depois, em São Paulo, foi feito um evento onde outras peças, como a do Wagner e o Evangelho da Renata Carvalho foram reapresentados dentro do recorte “arte sem censura”. O Dellani estava em São Paulo, e decidiu filmar assim mesmo, com equipamento próprio. Com esse material em mãos, chegamos ao processo de montagem compreendendo que esse filme precisava ser dito pela voz dos artistas, pelo que eles passaram. Era um contraponto ao cinismo do discurso da extrema-direita. Fizemos uma longa pesquisa em materiais de arquivo de CPIs e do Congresso.
Esse filme precisava ser dito pela voz dos artistas, pelo que eles passaram. Era um contraponto ao cinismo do discurso da extrema-direita.
O que fica muito explícito nesta ascensão da extrema-direita retratada pelo filme é a proliferação de pastores evangélicos na política. Eles também dominam o discurso contrário à arte no documentário.
Exato, o foco está nestes pastores apresentando seu discurso. A fala do filme é construída com duas imagens frente a frente. O filme não tem voz em off, ele prefere contrapor de uma maneira seca a experiência dos artistas, refletindo sobre o que passaram, em contraponto estes políticos. Por coincidência terrível, a maioria é ligada a correntes evangélicas, e traz este discurso moral e violento. Um dos pastores diz que vai degolar a Renata Carvalho. Ele dispara ameaças explícitas. O discurso da extrema-direita é colocado no campo da violência, de construção do medo.
Por que decidiram privilegiar as artes do palco? Tivemos censura a filmes e obras de museus neste período também.
Primeiro, porque o Dellani começou a filmar uma peça de teatro, e falou comigo e o Henrique, que temos uma ligação próxima com cinema e teatro. Pensamos que seria muito interessante falar sobre esta arte, e reunir estes artistas. As artes do palco estão diretamente ligadas com o público: os corpos estão expostos. Todos os artistas do filme sofreram perseguições, censuras, com seu corpo exposto frente ao outro. A escolha dos artistas do teatro e da performance se deve ao fato de exporem sua vida, seu corpo ao outro. Poderíamos ter ido mais fundo no Queermuseu, que foi um caso terrível. Passamos por ele no prólogo, e existe um lugar em comum neste caso junto aos demais. Era um lugar para se discutir. A partir destas histórias, o filme permite ampliar a representação desse movimento do terror e da perseguição às artes. Por isso, no final, listamos os casos de censura ocorridos nos últimos anos.
Esse filme não seria feito sem o desejo dos artistas de expor estes traumas terríveis.
Para os artistas, existe um caráter terapêutico ao exporem o que se sofreram. Como eles receberam a possibilidade de relembrar casos traumáticos?
Eu me lembro de uma fala do José Neto, que faz a Mulher Monstro. Ele estava na sessão do filme no festival É Tudo Verdade, em São Paulo. Ao final, ele veio até nós e disse: “Para mim, esse filme é muito importante. É um desgaste imenso eu ter que reviver essa história, e contar o que passei. Agora, eu não preciso mais falar disso, porque o filme conta por mim”. Parece que isso dá um ponto final à situação específica que ele passou, para poder seguir adiante. Foram traumas muito duros. Imagina, no caso do Wagner, acordar pela manhã e estar sendo chamado de pedófilo pelas redes sociais. Ele recebeu mais de cem ameaças de morte.
Todos os artistas desejaram, de maneira muito íntegra, compartilhar com a gente o que eles viveram. Esse filme não seria feito sem o desejo deles de expor estes traumas terríveis. O Wagner precisou sair do país! Nós sabemos da importância destes casos para situarmos este tempo histórico. O que eles sofreram precisa ser dito, divulgado, porque refletem esses tempos que vivemos. O José Neto, durante uma apresentação, recebeu uma pedrada há quatro anos. Este ano, uma pessoa faz um aniversário e leva um tiro. De uma pedrada, hoje se leva um tiro. Essa tem sido uma construção alimentada por quem está no poder.
Chegaram a pensar em elaborar uma estética tão afrontosa quanto aquela das obras representadas?
Queríamos que o filme trouxesse elementos para representar esta ascensão do terror, da perseguição, das ameaças. O filme não é apenas um documento didático do que aconteceu, porque isso seria impossível. Mas, enquanto obra, ele quer criar essa sensação do terror que se expandiu entre artistas, e para toda a sociedade. Hoje temos medo de ir à rua com a camiseta de um político que nos represente. Não por acaso, sempre é um político de esquerda — não podemos dizer que os dois lados são equivalentes, porque não é verdade. Henrique, Dellani e eu temos esta proposta de cinema. Se considerarem nossa linguagem tão provocadora quanto aquela das obras, eu fico muito feliz.
Hoje temos medo de ir à rua com a camiseta de um político que nos represente. Não por acaso, sempre é um político de esquerda.
Quem Tem Medo? tem um caráter afetuoso, de acolhimento. É quase um cinema pós-traumático.
Tomara! Quem sabe ano que vem isso tudo vai ter passado! Vai ser maravilhoso! Gostaria muito que fosse assim. Terminamos o filme com a peça do Biagio, contendo a imagem de uma cadela nazista — e o espetáculo foi escrito em 2017. A imagem final mostra a cadela do nazismo rondando o local, e neste sentido, o espetáculo foi muito visionário. Ainda tem uma ameaça de golpe por aí. Tivemos um ministro da cultura sem nenhuma vergonha de fazer um discurso plagiado dos nazistas. Acho que ainda é um cinema traumático, e não pós-traumático, mas para os artistas, deve ter sido muito importante falar.
O Alvim inclusive diz que não censura as obras, mas promove uma “curadoria”. Era importante definir os limites da censura e da liberdade de expressão?
Como pode ser liberdade de expressão um sujeito dizer que vai matar alguém? Isso é liberdade de expressão? Claro que não, é uma ameaça. No caso do Alvim, a Funarte era um espaço público, e qualquer artista poderia apresentar seu trabalho ali. De repente, ele pega a palavra “curadoria” e tenta inverter, de maneira cínica, o significado. A peça já estava aprovada, não foi algo prévio; ele não restabeleceu novas ordens. O Alvim passou por cima da diretora, baseado na sinopse da peça, e proibiu a apresentação.
O filme aponta caminhos para essas discussões. É liberdade de expressão ameaçar alguém? Sugerir pegar uma pessoa e bater; ou sugerir que direitos humanos se resolvem na paulada? Esse discurso foi dito dentro da Câmara dos Deputados! Um espaço do parlamento brasileiro, onde não parece ter limites. O presidente Bolsonaro fez um discurso sobre o golpe da Dilma, elogiando Ustra. Esse é o momento em que vivemos no Brasil. Perdemos o parâmetro, e parece que tudo é possível. Neste microuniverso dos artistas, e mais especificamente ainda, dos artistas do corpo, existe um reflexo da sociedade brasileira.
É um filme que, independentemente de sua estética, tem sua importância pelo debate político.
O filme está pronto há algum tempo, mas chega aos cinemas agora, perto das eleições presidenciais. Essa foi uma escolha deliberada?
Sim. Quando fizemos o filme, pensamos no que nos cabia, enquanto artistas, para efetuar um gesto político. Nosso ofício é produzir filmes, ou peças de teatro. Estreamos no É Tudo Verdade, circulamos em sessões especiais em outros lugares. A gente queria lançar nos cinemas, tendo distribuidora ou não. O Daniel Queiroz viu o filme e escreveu para nós, dizendo que também acreditava neste projeto. O gesto de militância dele seria lançar este filme, justamente neste momento em que existem milhões de outros filmes esperando lançamento. Decidimos pelo mês de agosto, para estimular debate e reflexão. É um filme que, independentemente de sua estética, tem sua importância pelo debate político.
Temos discutido muito o alcance deste cinema político. Um documentário politizado como este, de viés claramente progressista, deve ser visto sobretudo por pessoas já propensas a aceitar este discurso. Como enxerga esta questão?
Hoje temos um problema sobre como levar o público de volta ao cinema. Minha vontade, é claro, seria de que muitas pessoas fossem ao cinema e vissem o filme. Mas acreditamos que depois deste percurso na sala de cinema, ele possa ser visto e discutido em outros espaços. Estamos recebendo muitas propostas e chamadas de cineclubes, universidades, sindicatos. Acreditamos que, além do lançamento da sala de cinema, ele vai percorrer pequenas células de discussão que possam ampliar o público do filme. A etapa agora é percorrer as salas de cinema, junto com o público habituado a frequentar as salas. Mas acredito que ele vai ter seu percurso independente ao circuito comercial. Pela realidade econômica agora, sabemos que ele não vai poder passar em todas as cidades, mas gostaríamos que ele fosse visto em todos os lugares. É claro que vamos liberar o filme para quem escrever para a gente, interessado em passar o filme na sua cidade, em algum cineclube, por exemplo.
Vemos a oposição clara os dois discursos. O filme é isso: não precisamos de voz off, nem de muita intervenção da nossa parte.
Este foi um filme tão importante quanto duro de ver. Tenho criado uma resistência a novos filmes com as frases emblemáticas do Bolsonaro. Imagino para vocês, então, que reviram isso várias vezes na montagem.
A gente precisou ter muito estômago para essas imagens! Reviramos gravações de CPIs. Esses sujeitos trabalham na chave do cinismo. Eles sabem que estão mentindo, e isso torna a coisa ainda mais nojenta. Mas esperamos oferecer a vocês também os artistas, que são pessoas incríveis. Vemos a oposição clara os dois discursos. O filme é isso: não precisamos de voz off, nem de muita intervenção da nossa parte. O simples ato de confrontar essas duas imagens é uma questão estética. Opor estes registros já diz tudo: não precisamos acrescentar mais nada. Eles gritam sempre, mas não precisamos buscar de propósito: estes deputados gritam sempre. Eles são sempre assim.