A aflitiva imagem do presidente no cinema brasileiro

Cinema de fluxo e cinema de refluxo

Uma sensação tem se repetido durante as últimas sessões de documentários brasileiros: o incômodo generalizado de me deparar, de novo e de novo, com o resgate das piores e mais violentas falas de Jair Bolsonaro, pela boca do próprio presidente da república. O intuito destes filmes é evidente: resgatar as agressões normalizadas pela retórica conservadora (ou apenas esquecidas pela chegada da polêmica seguinte), atribuindo-lhes o peso e a importância necessários. 

Afinal, o cinema possui o caráter de documento do seu tempo, ou sintoma de uma época. Quando os conglomerados televisivos, pouco confiáveis na defesa da democracia, ou os canais virtuais, passíveis de desaparecimento sem aviso prévio, falharem em apresentar seu conteúdo às gerações seguintes, estes filmes transmitirão os absurdos vividos entre 2019 e 2022. Sem serem neutros nem imparciais – esta tarefa jamais coube à arte —, produzirão uma fortuna crítica indispensável para compreender como os criadores reagiram, à sua maneira, às afrontas vividas diariamente na fase autocrática do país.

Desde Democracia em Vertigem e O Processo, o cinema nacional tem multiplicado a exposição dos posicionamentos bolsonaristas oficiais, no intuito de repudiá-los. O rosto sorridente do capitão, empunhando armas verdadeiras ou invisíveis, e homenageando torturadores, reaparece em Excelentíssimos, Abismo Tropical, Alvorada, Amigo Secreto, Quem Tem Medo?, 8 Presidentes 1 Juramento, Quando Falta o Ar e Sinfonia de um Homem Comum, para citar apenas alguns dos projetos que recordam as famosas passagens do líder do governo.

Amigo Secreto, de Maria Augusta Ramos

Isso talvez faça de Bolsonaro um presidente particularmente retratado pelo cinema nacional, o que poderia ser lido por uma perspectiva otimista: os artistas, ao menos, passam longe do conformismo ou da impressão de normalidade face a este regime, destacando-o e repudiando-o quantas vezes forem necessárias. Nas minhas entrevistas com muitos destes cineastas, a pergunta quanto às motivações do projeto levou a respostas semelhantes: “Precisamos falar sobre isso”, “precisamos gerar reflexão”. “Não podemos deixar cair no esquecimento”. Há uma impressão de dever a cumprir.

Cabe imaginar que os espectadores precisem ouvir tanto quanto os artistas precisem dizer o que sentem e pensam. Há um caráter terapêutico, de expurgo coletivo e social, através da enxurrada de filmes que, para resgatar Bolsonaro, debruçam-se corajosamente sobre seus desfeitos. Se os trechos nos trazem a amargura à boca, tal qual um refluxo, os artistas se depararam com estes mesmos trechos incontáveis vezes ao longo do desenvolvimento da obra. Existe a vontade de expor uma indignação para encontrar eco em terceiros, garantindo desta maneira que o desconforto e a ira não fiquem presos a nós mesmos. 

Há um caráter terapêutico, de expurgo coletivo e social, através da enxurrada de filmes que, para resgatar Bolsonaro, debruçam-se corajosamente sobre seus desfeitos.

Trata-se de um cinema que dificilmente espera convencer alguém e trazer espectadores para o “nosso lado” (até porque o campo progressista é diversificado, e repleto de contradições próprias). Ora, quantos espectadores de direita, avessos ao cinema brasileiro, aceitariam pagar o ingresso para sessões de filmes claramente situados do outro lado do espectro ideológico? Falamos entre nós próprios, de artistas questionadores ao público aberto a questionamentos. Podemos nos inflamar mutuamente, ou apenas levantar novos dados, aprofundar a reflexão. Em muitos casos, levantam-se mais perguntas do que respostas.

Apesar de todos os méritos apontados, além de outros que não caberia aprofundar aqui (a capacidade de destrinchar uma estética da direita, a participação na “disputa de narrativas”, o potencial de associar, via montagem, falas e discursos que jamais conviveram juntos), a sensação do espectador progressista, após a maré de filmes, revela-se de cansaço. Talvez possa se falar numa aversão — não aos projetos, em vários casos, excelentes, mas à exposição repetida de materiais aos quais já somos expostos no dia a dia.

Quem Tem Medo?, de Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr.

Isso porque os gestos e falas de Bolsonaro constituem, em sua ampla maioria, posicionamentos de afronta e agressão deliberada. Espectadores mulheres, negros, indígenas, deficientes, gays, lésbicas e travestis, ou apenas cidadãos munidos de senso crítico, escutaram nos últimos quatro anos a uma sucessão de falas de deboche, desdém ou ataque frontal às suas existências e dignidade. Trata-se de feridas recentes, jamais criminalizadas e que, pelo contrário, legitimaram uma parcela da sociedade a agir de modo semelhante.

Ao espectador minimamente informado (aquele disposto a assistir a documentários brasileiros), nada disto foi propriamente esquecido, nem mesmo processado. Não houve distanciamento suficiente, seja temporal, seja de transformação governamental, para efetuarmos um luto do ocorrido. Sabemos que Bolsonaro disse e fez tudo o que disse e fez. Por isso, estas falas violentas surgem no cinema como um retorno do (mal) recalcado, uma violência repetida e desagradável.

Estas falas violentas surgem no cinema como um retorno do (mal) recalcado, uma violência repetida e desagradável.

Os filmes não poderiam ser julgados violentos em si, posto que argumentam contrariamente às posturas oficiais, e contrapõem a estética do grito raivoso com a poesia, a contemplação e o afeto. Há uma tentativa de abraçar o espectador, ou fornecer algum tipo de afago – porém, apenas depois de nos relembrar daquilo que ainda não esquecemos. Sabe aquela violência extrema que você sofreu, e ainda sofre? Pois é, um dia ela passará. Resistiremos. Mas não se pode falar em resistência sem mencionar, antes, contra o quê se resiste.

Por isso, surge esta aflição, este embrulho no estômago, ao nos preparar para assistir a mais um projeto a respeito do bolsonarismo. Lá vamos nós novamente. O que será desta vez? A defesa da ditadura? O desdém com negros? A associação entre indivíduos LGBTQIA+ e a pedofilia? A “fraquejada” que o teria feito conceber uma menina, ao invés de um menino? O fuzilamento da petralhada? As ameaças de golpe à democracia, as sugestões de que poderia não acatar o resultado das eleições – ou mesmo se recusar a organizá-las?

Abismo Tropical, de Paulo Caldas

Alguns colegas de esquerda se prestam a navegar, diariamente, pelos canais bolsonaristas nas redes sociais. É preciso conhecer o outro lado, dizem, com o estoicismo e a retidão de um bom cientista social. Eles têm razão, e seu movimento é louvável. A tantos outros, nos quais me incluo, falta estômago para me confrontar, voluntariamente, a pensamentos que recusam minha existência e gostariam de me ver morto. E que são tidos como democráticos, legítimos, aprovados por pelo menos 30% da população. 

A imagem deste homem representa mais do que a si mesmo. Ele ilustra um despertar reacionário, agressivo e feroz, travestido de normalidade e democracia. Qual o problema em tentar fechar o Congresso? O STF? Em censurar um filme ou outro que me desagrade? Seria apenas uma “curadoria”, como defendeu o secretário Ricardo Alvim? “Faça filmes com o seu dinheiro”, responde o presidente em relação a obras progressistas, ciente de que isso equivale a inviabilizar estas obras. 

A produção política, pelo menos aquela dedicada aos tempos presentes, abordando de modo literal o que atravessamos, corre o risco de gerar repúdio até por parte do espectador propenso a apreciar tais discussões.

Ora, o cinema não é feito para os próprios artistas, e sim, para o público. Sendo a cultura um bem coletivo e comum a qualquer democracia, ele precisa ser fomentado e estimulado pelos Estados. Privatizar sua produção equivale a apartá-la de seu propósito. Mas os golpes mudaram: não se colocam mais tanques nas ruas, apenas se adia uma eleição, se recusa a aceitar o resultado. Não se criam mais comitês de censura, como nos tempos da ditadura militar: basta retirar o dinheiro dos editais, fechar cinematecas, retirar verbas de festivais. Matar a arte por asfixia, lentamente, de maneira mais perversa do que a execução sumária e espetacular. A estética do carrasco se modernizou.

Enquanto isso, a produção política, pelo menos aquela dedicada aos tempos presentes, abordando de modo literal o que atravessamos, corre o risco de gerar certo repúdio, até por parte do espectador propenso a apreciar tais discussões. Não, por favor, não me lembre de novo esta fala, este debate. Já vejo nos jornais, na televisão, nas redes sociais, nas conversas com amigos e familiares, todos os dias. Já sei o que o presidente disse, o que tal senador ou deputado respondeu, lembro a cusparada, lembro a votação do golpe de 2016, lembro de tudo isso. Favor não insistir.

Carro Rei, de Renata Pinheiro

Estas obras possuem uma importância, inclusive sintomática, na percepção da maneira direta e cartesiana com que o cinema enfrentou a linguagem do campo opositor. Há incontáveis formas de praticar um cinema político: existe a política do afeto, a representação do bolsonarismo por metáforas, pela poesia, por alusões, pelo cinema fictício de gênero (Bacurau, Medusa, Carro Rei, Divino Amor), pelo cinema experimental. Existe a representação pela ausência, pelo avesso, pela fábula, pela distopia. 

No entanto, o enfrentamento de maneira literal diz muito a respeito de nossa dificuldade de dar um passo além – pelo menos, enquanto ainda estamos imersos no furacão. Metáforas implicam num grau de elaboração dependente do distanciamento, do qual ainda não somos plenamente capazes. Por enquanto, é preciso expor as coisas como estão, rever o horror em sua totalidade, em cenas longas, com poucos cortes, e dizer: você também viu isso? Viu mesmo? Viu como eu vi? Isso aconteceu de verdade, não aconteceu? Vimos todos a mesma coisa, correto?

Talvez este cinema documentário acerca do bolsonarismo, produzido durante o bolsonarismo, encontra-se, em sua maioria, nesta fase de show and tell.

Nos Estados Unidos, uma prática pedagógica comum com as crianças em fase escolar se chama show and tell, ou “mostre e conte”. Os pequenos levam objetos pessoais e explicam aos amiguinhos do que se trata. A necessidade de verbalizar a terceiros algo tão natural para si próprio consiste num primeiro passo para adquirir distanciamento e compreendê-lo. O processo de terapia psicanalítica, e a própria crítica de cinema, passam por processos semelhantes de elaboração pela palavra. A emoção que borbulha em nós pode não ser a mesma que ferve num corpo distinto. 

Talvez este cinema documentário acerca do bolsonarismo, produzido durante o bolsonarismo, encontra-se, em sua maioria, nesta fase de show and tell. Não há qualquer caráter depreciativo nesta configuração, pelo contrário: encontramos as ferramentas necessárias para efetuar uma espécie de pacto de discussão e conscientização a partir de fatos que poderiam se parecer com delírios coletivos. Não alucinamos. Isso ocorreu mesmo, veja aqui. Olha só. É claro que o cinema ultrapassa, ontologicamente, a ilustração direta do real. Sempre haverá ponto de vista, o que é algo a se festejar, ao invés de lamentar. Caso contrário, os filmes políticos seriam todos idênticos, e ainda mais exaustivos do que de fato são.

Sinfonia de um Homem Comum

Por enquanto, cansamo-nos com estas obras e estes lembretes sucessivos de que as violências em nossos corpos e identidades de fato ocorreram. Entretanto, nós o fazemos juntos. Ainda há acontecimentos políticos fervorosos se anunciando no horizonte político de 2022, com as eleições presidenciais e as respostas ao seu resultado do pleito. Teremos mais cinema, mais imagens de Bolsonaro gritando, ofendendo, agredindo, dissimulando, atacando. O cinema voltará a se oferecer como arquivo dos nossos tempos – cinema duro para realidade dura. 

O futuro ainda dirá que isso foi absurdo. Quem sabe, no futuro, poderemos assistir a esses filmes novamente com leveza. Um dia, quem sabe.

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