Há muitos anos, o cineasta alagoano René Guerra desenvolve o roteiro de Serial Kelly. Agora, a comédia policial chega aos cinemas, trazendo a história de uma cantora brega (Gaby Amarantos) que se apresenta em pequenos cabarés, e provoca algumas mortes durante a sua turnê. Os casos chamam a atenção de uma policial (Paula Cohen), que precisa se afirmar dentro de uma corporação machista e prender esta que parece ser a primeira serial killer feminina do Brasil.
O filme traz uma jornada simbólica pelo “Brasil profundo”, investigando a cultura e o conservadorismo do país. O cineasta introduz na trama o peso das igrejas neopentecostais e os crimes cometidos contra travestis e mulheres trans, enquanto brinca de objetificar os homens da mesma maneira que os corpos femininos costumam ser objetificados no cinema.
O Meio Amargo conversou com Guerra a respeito deste projeto tão singular, que entra em cartaz dia 24 de novembro, pela Vitrine Filmes:
O título sugere a matança desenfreada da protagonista, mas não é isso que encontramos no filme. O que este nome representa para você?
Serial Kelly nasceu dentro da faculdade, partindo dessa ideia do serial killer. Mas depois fui para o sertão com o Marcelo Caetano, co-roteirista, e encontramos vários atravessamentos. Em 2010, o Brasil teve o boom dos comodities, então havia a crítica ao consumo desenfreado. Com a entrada da Bananeira Filmes, refizemos esta pesquisa, e já encontramos um sertão completamente devastado, dando indícios de uma guerra santa das novas igrejas pentecostais. Não gosto de falar de forma generalizada sobre nenhuma religião, mas a transformação estava ocorrendo, e a guerra, também.
A primeira versão do filme era gore. Depois a gente foi compreendendo, quando a Gaby Amarantos entrou no projeto, que a resposta à violência aplicada ao corpo de uma mulher negra num interior machista precisava ser contornada por outros aspectos, diferentes daqueles do nordestern. Era preciso construir uma subjetividade nela. Então o título serve muito mais como o bullying da imprensa. Nem é um trocadilho para enganar o público, mas uma forma de mostrar como a estrutura patriarcal e machista lida com o feminino, quando as mulheres usam as mesmas armas dos homens. Não é uma questão de marketing, apesar de eu amar o título.
Além disso, quando a imagem nasce, o roteiro morre. A montagem da Eva Randolph também trouxe outra perspectiva. O roteiro foi muito elogiado pela Globo Filmes, onde temos tutores. A Vânia Catani, produtora, também adorou. O roteiro era escrachado, porque eu sou esta pessoa escrachada. No final, ele durou cinco anos para ser escrito, desde 2010. Ele tem muito a ver com Thelma & Louise (1991) sim, mas tem muito a ver com o trágico. Como eu venho do teatro, tragédia e comédia são duas máscaras que andam lado a lado. É complexo categorizar um filme que trabalhe esses dois lados da moeda. Os irmãos Coen trabalham isso de maneira genial, mas não estou me comparando a eles. Eu queria o deboche, queria sair desse conservadorismo através de piadas explícitas. Acredito que a comédia tem uma função de alcance, mas também permite tocar em temas profundos, dentro de uma estrutura clássica de roteiro.
Você é alagoano e centra a história em Alagoas, incluindo diversos novos atores do Estado. Tinha a preocupação em incorporar a paraense Gaby Amarantos a esta região, assim como o pernambucano Thomas Aquino?
Antes de Luís Gonzaga, tudo era Norte. Nós éramos nortistas. O eixo Rio-São Paulo era o Brasil, e o resto era Norte. Então eu nunca achei que a Gaby não fizesse parte desse imaginário Nordestino. Na construção da Kelly, a Gaby quis trabalhar o sotaque alagoano, e fez um mergulho profundo durante a preparação. Ela abriu mão de turnês e viveu um tempo de preparação em Maceió, além da preparação no Rio de Janeiro. Em Maceió, ela teve contato com os atores locais e isso foi se consolidando. Teve uma generosidade imensa tanto da Gaby quanto da Paula Cohen nesse filme de gato e rato.
As falas destas mulheres são muito importantes no filme, porque as personagens nasceram com uma tragicidade. Por mais que o racismo, a gordofobia, a misoginia, o machismo e a LGBTfobia estejam claros, nós passamos muito tempo mascarados. Este filme vem para ter este alcance, chegar às pessoas, e fazê-las pensar enquanto se divertem e se reconhecem. O filme nasce com a pulsão de erotismo, de desejo e de morte. Ele tem uma investigação teatral. Já faz tempo que pesquiso na Unicamp uma teatralidade no cinema. A gente fala de forma pejorativa que um filme é teatral. “Ah, mas essa atuação está teatral!”. Também dizemos que “menos é mais”. Aqui em Alagoas, para Lampião, menos é morte, porque somos barrocos.
Isso remete a uma cinematografia da América do Sul, na qual eu preciso me aprofundar mais. Quero beber dessa cinematografia, mas também de Mike Leigh, de Jane Campion, do kitchen sink drama, da tomada de consciência do personagem no cotidiano. Mike Leigh vem do teatro, e trabalha a artificialidade, um tom acima. Já a Jane Campion, para mim, é uma inspiração de vida. O filme também tem cores fortes, aí me perguntam: “Você bebeu de Almodóvar?”. Mas a gente sempre passa pelos cineastas que vieram antes. Eu já vi Almodóvar em preto e branco, e posso dizer que a cor é uma coisa violenta. O melodrama que ele coloca ali, invertendo os papéis, é uma crítica à sociedade conservadora espanhola.
Você escolheu uma cantora brega para interpretar uma cantora brega. Tendemos associar Kelly à Gaby Amarantos, como se a artista interpretasse uma versão de si mesma. Como enxerga esta relação entre persona, atriz e personagem?
Você falou uma palavra importante: a persona. A persona Gaby é uma construção artística, performática, que tem a ver com a raiz dela. Eu tive que desconstruir esta persona e reconstruí-la, para que esta persona não ficasse apenas alegórica. O filme é uma trajetória, e o final trazemos praticamente uma referência à Tina Turner em Mad Max 3 – Além da Cúpula do Trovão (1985), ressignificando esteticamente, através da moda, essas reconstruções internas e externas da personagem. Isso ocorre com temperaturas diferentes. A forma de cantar tem muito a ver com o estudo musical que a Gaby fez, misturando ritmos paraenses com ritmos nordestinos. Trabalhei muito a voz dela, sempre num tom mais grave. Uma coisa era lei: eu poderia rir de tudo e de todos, menos da Kelly. Poderia rir do absurdo ao redor, mas nunca dela.
A nudez e a morte são bem explícitas; você mostra o corpo sem tabu. Como vê o retrato do corpo?
É uma questão de ponto de vista. As pessoas costumam se afastar de cenas muito grotescas, mas o plano do cadáver da travesti era importante. Eu precisava filmar a dimensão da violência que aquele corpo sofreu; não era possível omitir isso. Não estou falando de uma relação com o filme gore; é explicito mesmo. Omitir, neste caso, seria compactuar. Quando o passarinho gera o corte para a nudez masculina, aí já é uma vingança minha. Nós objetificamos o homem, colocando-o no lugar do feminino, que sempre foi objeto do olhar no cinema. A cena traz um prostíbulo onde as mulheres fariam um show para os homens, mas ali ocorre uma inversão. A intenção era expor os homens. O Luciano Pedro Jr. foi corajoso e generoso nesta exposição.
Todas as cenas explícitas tinham a função de chocar, mas também de mostrar: “Olha o que vocês fazem com o corpo feminino. Sintam-se no lugar de exposição de um corpo feminino”. Olhar e ser olhado são coisas totalmente diferentes. A atuação do Luciano, naquela cena, é constrangida. Minha consciência era essa, sendo um diretor gay, exercitando um diálogo com a história da arte, onde sempre o corpo feminino é objeto de desejo. No caso de Kelly, o masculino não é objeto de desejo, é puro objeto. Foi esse objeto que causou a morte da travesti. Foi esse masculino que gerou a morte dela.
Como enxerga Serial Kelly dentro do cinema policial? O gênero costuma estar ligado a pistas, investigações e perseguições, mas isso não procede no seu filme, que é mais livre, com grandes saltos temporais.
Não me interessavam muito as pistas. Era mais interessante explorar o comportamento de cada personagem. Os estímulos que eu passava à delegada, Paula Cohen, eram: “Você precisa salvar esta mulher destes homens”. Para a Gaby, eu dizia: “Você precisa se esconder, se transformar”. Grace Passô deu uma palestra recentemente, apelando a uma dramaturgia que borrasse as fronteiras do corpo. Elas se desenvolvem em função uma da outra, mas o trágico está neste desencontro. É menos policialesco — e não falo isso de modo pejorativo — do que um espelhamento possível entre as duas. Mesmos sendo mulheres, elas têm marcas diferentes, e estão em posições contrárias. A Kelly já nasceu com um traço trágico. Inclusive, ela é filmada sempre no centro da imagem, isolada do resto. O roteiro vai apontando, o tempo inteiro, o trágico que está por vir, mas que foi reconstruído na montagem pelas mãos da Eva Randolph.
Existe uma cena messiânica das mulheres trans e travestis numa cerimônia. Neste momento, Kelly se torna mera observadora. Era a sua tentativa de representar todas as mulheres, em paralelo?
Essa cena é o coração do filme. Ela é o local de descanso. Meu trabalho sempre foi focado no simbólico, na fábula. No sertão, em locais de seca, você começa a ter miragens. Essas mulheres são como fadas madrinhas, e o cemitério não é um cemitério qualquer. Ali, todos os outsiders são enterrados com dignidade. Em 2016, Alagoas teve o maior índice de assassinato contra a população LGBT, entre elas, pessoas que eu conheci, pessoas próximas. A arte também é uma forma de lidar com as nossas feridas e enterrar simbolicamente os amigos ali, na imagem. Quando Kelly se mistura às meninas, ela perde o protagonismo. É uma junção das mulheridades, algo em que eu acredito muito.
A dublagem de La Solitudine mostra o quanto uma mulher forte sofre de solidão. Eu queria usar a música inteira, porque este é o único momento de sororidade. De resto, até a voz da Kelly é roubada. Mas o depoimento da personagem vem através da música. Todas as canções representam falas da Kelly, e também são escolhas da Gaby. A versão de Rapariga Cascavel estava rascunhada no roteiro, mas a Gaby refez toda a letra, a autoria é dela. Romance que Ninguém Leu também é dela. A Gaby trouxe a história dessa música: Reginaldo Rossi levou uma música a uma gravadora que sugeriu que ele deixasse de ser cantor. Então surgiu Romance que Ninguém Leu. É uma homenagem a todos os antepassados do brega, do Brasil profundo, do que foi subestimado — até da pornochanchada, dos pink movies.
Tinha muito preconceito, mas essa também era uma forma de subverter a censura. Ao colocar o sexo na frente, você consegue falar sobre outros temas. E tinha uma relação de liberdade em relação aos corpos, mesmo que de forma deturpada em muitos filmes. Mas havia liberdade ali, e pulsão de desejo. O erotismo e o deboche são armas muito poderosas para a gente desconstruir todo esse conservadorismo e toda essa caretice que estão tentando se instalar nesse país. Descobrimos que o país estava disfarçado com máscaras de Carnaval, mas é profundamente conservador. É um país que ama a carnavalização, mas o que está por trás não é nada daquilo que nos mostram.