Em 30 de março de 2023, os cinemas brasileiros recebem a estreia de A Garota Radiante (La Jeune Fille qui Va Bien), primeiro longa-metragem de Sandrine Kiberlain como diretora. A experiente atriz de Crônica de uma Relação Passageira, Mademoiselle Chambon e A Viagem do Meu Pai permanece atrás das câmeras nesta história sobre Irene (Rebecca Marder), uma jovem judia de 19 anos, vivendo na França durante a Segunda Guerra Mundial. Ela mora com o pai, conservador, mas afetuoso (André Marcon), e com a avó (Françoise Widhoff), um espírito livre que a encoraja a seguir a carreira nas artes dramáticas.
No entanto, enquanto vivencia seus primeiros amores e espera a resposta de uma prestigiosa escola de teatro, Irene começa a perceber que existe algo estranho no horizonte. Começam a surgir as primeiras leis para marcar e segregar judeus. Ao invés de representar o auge da perseguição antissemita, o longa-metragem analisa o verão em que as medidas iniciais passaram a vigorar na França. Irene tenta fechar os olhos às notícias negativas, mas seu corpo passa a manifestar os sintomas de uma sociedade doente.
O Meio Amargo conversou com Sandrine Kiberlain a respeito deste belo drama, lançado no Brasil pela Pandora Filmes:
Por que decidiu se concentrar no início da perseguição aos judeus, ao invés do ápice deste período?
Eu estava muito interessada em abordar o que veio antes. Eu sempre me perguntei a respeito, e quis me colocar no lugar daqueles que viviam este instante no presente, no dia a dia. Como as pessoas começam a sentir que algo estranho está chegando? É claro que não dava para imaginar aquilo que descobrimos a seguir. Ninguém poderia imaginar os campos de concentração, a tortura, a perseguição. Queria me colocar no lugar de uma família judia francesa, talvez um pouco mais protegida do que as demais, mas que ainda não experimenta todas as restrições. Quis seguir uma garota que não espera nada daquilo. Ela vive a sua idade, suas paixões, seus encontros e esperanças. De repente, tudo se transforma. Aqui na França nós vivemos o Bataclan, os atentados. Era importante que o filme não tivesse uma conotação forte demais de reconstituição histórica, para que todos pudessem se identificar, e ela se transformasse numa Irene universal. Uma Irene de ontem, hoje e amanhã. O filme precisaria ter um lado mais moderno também.
Era importante que o filme não tivesse uma conotação forte demais de reconstituição histórica, para que todos pudessem se identificar.
A respeito desta modernidade, você escolha roupas e objetos da época, mas opta por uma direção de fotografia digital, bem nítida e contemporânea.
Era preciso ter uma sobriedade nas cores e nas locações. Tudo é bem discreto, ao contrário dos filmes muito exagerados, onde parece que está escrito “Junho de 1942, Paris” em letreiros, sabe? Não sabemos exatamente o ano e local onde estão, porque o foco se encontra na heroína. Era preciso evitar o pleonasmo. Escolhemos uma imagem e uma iluminação muito precisas, com cores primárias, além de pequenas manchas vermelhas e amarelas. Era uma imagem solar, porque não posso mentir quanto à data: a trama se passa no verão, antes que tudo tenha se transformado. Ao mesmo tempo, era preciso estar na nossa época, porque sou eu, nos dias de hoje, filmando. Até cogitei filmar em película, mas seria óbvio demais para a história que estou contando. Precisei então me apropriar desta história, e adotar o olhar de alguém contemporâneo, com minha visão sobre este drama. Meu ponto de vista é particular, porque fico num espaço extracampo. Não mostro os soldados, nem as bandeiras. Há poucos figurantes. A tensão vem do caráter vazio e silencioso.
Por que decidiu unir atores bastante experientes com outros que nunca tinham atuado antes, como Françoise Widhoff, no papel da avó?
Para esta avó, eu precisava de alguém que fosse uma personagem. Procurei uma mulher excepcional em sua vida e sua liberdade, para representar o que a Irene poderia se tornar, muito tempo depois. Queria que ela parecesse mais jovem do que os jovens. Françoise é uma amiga minha. Não queria uma vovó debilitada. Todos nós vamos nos tornar velhos, e já fomos jovens. Os velhos são sempre tratados como alguém diferente de nós, como se pertencessem a outra categoria. Mas existem mulheres de 80 anos que são modernas, com atitudes joviais, muito mais do que nós. Quando fiz testes com a Françoise, eu lhe pedi para falar de amor. Ela dizia para Rebecca: “Estou apaixonada porque gosto de recolher as meias do meu marido. Tudo que me desagrada nele se torna uma oportunidade”. Ela é muito inteligente, espontânea. Ela dizia à Rebecca: “Não fique com ciúme se outras meninas prestarem atenção ao seu namorado. Isso é um elogio, na verdade”. Eu queria este temperamento para a personagem.
Quando representamos épocas antigas, as pessoas parecem que colocam suas luvas e corpetes, e se tornam polidas demais.
Gosto muito da cena em que esta avó compartilha sua primeira experiência sexual, aos 15 anos de idade.
Eu queria muito que as pessoas falassem, naquela época, da mesma maneira que falam hoje. Quando amamos, o sentimento é igual àquele da época. Não é preciso falar em “estilo anos 1940”. Uma avó pode dizer: “Transei aos 15 anos de idade. Com quantos anos você transou?”. Isso vale para todas as épocas. Normalmente, quando representamos épocas antigas, as pessoas parecem que colocam suas luvas e corpetes, e se tornam polidas demais. O mesmo vale para os irmãos. Às vezes eles se adoram, às vezes querem se estrangular, o que é normal em qualquer família.
O que representa para você as metáforas sobre a saúde de Irene: os desmaios, a visão, a aparência pálida? O título original, “Uma jovem que está bem”, faz referência a isso também.
Queria tratar estas metáforas pelo inverso do que eu conto. Uma garota “que está bem”, mas desmaia o tempo todo, mostra que o corpo a trai. Isso serve como um pressentimento. Embora ela ainda não compreenda o que acontece ao redor, o corpo já dá alguns indícios. Quis introduzir estes elementos para deixar claro que ela não é uma menina totalmente alienada, incapaz de perceber o que ocorre na sociedade. Ela apenas prefere não ceder às dificuldades, e quanto mais ela tenta evitar essas dificuldades, mais o corpo fala por si só. As pernas dela não a suportam mais. O título “Uma jovem que está bem” significa que as coisas não estão tão bem assim. Quando dizemos algo do tipo, começamos a suspeitar: ela está bem mesmo? É um jogo: ao não dizer as coisas, sugiro aquilo que ocorre. Ao invés de mostrar, insinuamos e damos a vontade de ver o perigo, até o final. Esta conclusão não mostra nada, mas ela me parece ainda mais forte pelo estímulo à imaginação do pior que pode acontecer.
Acabei falando muito de mim mesma e das minhas origens, da minha paixão pelo teatro, pela humanidade e pelo amor.
A história de uma jovem que sonha em se tornar atriz nos leva a interpretar o filme como uma autobiografia. Esta leitura se sustenta?
Completamente, mesmo que eu nem sempre tenha percebido isso. Quando escrevemos o nosso primeiro longa-metragem, descobrimos uma montanha de elementos e vontades do que gostaríamos de abordar. Quando assisti ao filme terminado, com várias pessoas na sala de cinema, pensei: “Que loucura. Estou compartilhando tudo sobre mim mesma”. É um pouco pudico, claro. Na minha família, eu não tenho mais meu pai, mas na história, Irene não tem a mãe. Eu tenho uma irmã, mas ofereço à personagem um irmão. Então existe um pudor ali, mas isso diz muito sobre mim. Quando fazemos um primeiro filme, acabamos sempre dizendo muito sobre nós mesmos, porque este é o universo que conhecemos melhor. Assim podemos ser mais sinceros. Quando busquei a paixão de Irene, lembrei de duas coisas: primeiro, que eu adorei ter dezenove anos, porque foi nesta idade que conheci o teatro. Foi um renascimento. Decidi transformá-la numa jovem atriz que sonha em entrar numa escola famosa. Eu passei por isso, e me parecia mais fácil contar este momento. Segundo, era preciso que ela fosse ativa nas histórias de amor, na vontade de se apaixonar. Sempre gostei disso nas pessoas, e faço questão de manter em mim: tenho horror de ficar numa posição passiva. Irene inventa as histórias de precisar de óculos, para se aproximar do rapaz. Era preciso que o espectador se identificasse com ela, torcesse por ela, para o filme funcionar. É verdade que sempre falamos muito de nós mesmos, sem perceber. Acabei falando muito de mim mesma e das minhas origens, da minha paixão pelo teatro, pela humanidade e pelo amor. São os temas que me interessam. Ao ver o resultado final, ficava pensando: “Essa autoridade do pai é algo que eu conheço muito bem”. Foi uma loucura.
Fiquei curioso para saber se esta história em particular despertou a vontade de dirigir, ou se a vontade de dirigir existia antes de encontrar a história.
Minha profissão é atriz. Continuo sendo atriz, é claro. Sei que nem todas as atrizes são assim, mas como eu trabalho bastante, e tenho sorte por isso, não preciso fazer outra coisa. Mesmo assim, tenho a necessidade, às vezes, de contar algo que escolhi. Eu conto muito as histórias dos outros, porque mergulho no universo dos diretores e me dedico às experiências deles. Mas às vezes penso: e eu? Eu também tenho a necessidade de contar algo, de viver algo, sem atuar no projeto. Aliás, eu não atuo em A Garota Radiante. Precisava contar esta história e filmá-la, inteiramente. Tinha a vontade de fazer um filme que sempre desejei, mas não podia filmar pelo simples prazer de fazer um filme qualquer. A ideia precisava ser diferente, precisava ter um ponto de vista pessoal. Este período da história já foi contado mil vezes, mas eu queria abordá-lo de outra maneira. Quando soube que tinha encontrado este ângulo particular, com a juventude em primeiro plano, e com aquele final em especial, decidi que era hora de passar à direção. Quis colocar todo o meu empenho nisso.
Quando soube que tinha encontrado este ângulo particular, com a juventude em primeiro plano, e com aquele final em especial, decidi que era hora de passar à direção.
No que diz respeito aos jovens da escola de teatro, você reúne alguns dos maiores talentos em formação do cinema francês. Estão todos lá: é um painel impressionante. Como trabalhou com eles?
Durante os ensaios, trabalhamos de maneira bastante regrada. Mas na hora de escolher cada um, escolhi algumas cenas que não existiam no filme, para não prejudicar a experiência da filmagem. Eu escutei muito cada um, e os observei durante um longo tempo. Foi engraçado, porque cada vez que eu escolhia um deles, ele me dizia que já conhecia o outro que tinha sido escalado antes. No final, todos já se conheciam. Este grupo não se formou por acaso: eles já gostavam uns dos outros antes, e eu nem sabia disso. Eu os escolhi com muita empatia, pelo fato de também ser atriz. Por exemplo, escolhi um nome para cada personagem, mesmo aqueles minúsculos. Mathilde se chamou Marie, Elsa Guedj foi batizada de Marthe imediatamente. O fato de dar um nome a cada um deles evita que se tornem “Jovem número 2”, “Adolescente número 3”. Cada um deles tinha um nome, uma personalidade construída. Essa é uma forma de respeito: cada ator tinha um personagem com identidade clara para defender.
Como esta história se conecta com a França contemporânea? Qual é a importância de nos lembrar deste episódio hoje?
Eu também fiz o filme por esse motivo. A mensagem precisa se propagar para que a gente não se esqueça nunca mais. É importante contar isso de várias maneiras diferentes. Eu quis contar este drama porque isso perdura, ainda tem consequências atuais. Esta é uma loucura que não deveria existir nunca mais. Foi algo tão insano que nos destruiu, nos soterrou. É maluco que estas perseguições ainda existam. O racismo, o antissemitismo, não podem mais existir. Por isso, precisamos continuar contando, se possível, de maneira forte, impactante, buscando novas maneiras de abordar. Pode ser em música, em poema, como for, contanto que isso continue. As gerações diretamente afetadas vão se esgotar. Cabe a nós ser os mensageiros para que nossos filhos conheçam essa história. Eles não podem se esquecer jamais, e precisam continuar transmitindo para os filhos deles. Nós vivemos o horror em permanência: tem mulheres sendo mortas todos os dias, todos os minutos. Apenas por serem mulheres. Ou homens e mulheres negros, apenas por serem negros. É inadmissível, é inconcebível. Eu fiz esse filme e falei para Rebecca, que interpreta a Irene: “Você faz a personagem de uma época, confrontada a um horror antigo, para falar da Irene de hoje e de amanhã. Na minha cabeça, e na sua, é importante que ela seja atemporal”. O filme busca transmitir um basta à intolerância, e apontar isso de maneira clara. Meu plano preferido, que representa o filme todo, é quando Irene dança no restaurante com as amigas, assim como qualquer adolescente do mundo. Mas ela é designada diferente porque carrega uma estrela amarela na roupa. Era importante que, neste momento em que começam a proibir a entrada de judeus nos restaurantes, ela seja vista como diferente porque a obrigam a vestir uma insígnia. Por quê?
As gerações diretamente afetadas vão se esgotar. Cabe a nós ser os mensageiros para que nossos filhos conheçam essa história. Eles não podem se esquecer jamais.
Este final é fortíssimo. Ele nos diz muito sobre o terror da época, sem diálogo nenhum.
O final representa o filme inteiro. Este é o ponto culminante de tudo o que pretendia fazer, no sentido de não mostrar para instigar a imaginação. A imaginação pode despertar imagens muito mais graves do que eu seria capaz de mostrar. Nós conhecemos as imagens do que aconteceu. Mostrar, neste caso, seria redutor. Seria colocar a câmera num lugar e dizer: “É isso que aconteceu”. Mas nunca poderemos reconstituir exatamente o que aconteceu. Os filmes deve época têm dificuldade de enfrentar o naturalismo porque Simone Weil já dizia: “Não podemos filmar o que aconteceu. Não podemos transformar em ficção um campo de concentração”. Eu concordo: não é possível filmar um campo de concentração. É o meu ponto de vista. Este final, com uma ideia interrompida e uma imagem preta diante da qual pode se imaginar o que quiser — tudo aquilo que já sabemos, ou algo ainda pior — era a única maneira possível de terminar, na minha opinião.