“A podridão está em todos os lugares”. A frase de abertura deste drama nos prepara para algo sombrio. Em menos de dez minutos de narrativa, Christiane (Natja Brunckhorst) já consumiu drogas, sofreu abuso sexual de um desconhecido na sala de cinema e testemunhou uma cena de overdose. O cartaz original, com os dizeres “Um filme chocante!”, e o título brasileiro, diferente do alemão, preparam o espectador para um mergulho na decadência.
De fato, os acontecimentos são velozes no que diz respeito ao contato da menina com este submundo da heroína. O roteiro é baseado na história real de Christiane F., em reflexo à onda de drogas que marcou a cidade de Berlim no final dos anos 1970, quando os adolescentes viciados permaneciam nos arredores da estação de metrô Bahnhof Zoo. A protagonista serve portanto de exemplo para uma comunidade inteira, conforme atesta, uma vez mais, o cartaz internacional (“O retrato de uma geração”).
Em contrapartida, engana-se quem espera do filme um espetáculo de perdição. O diretor Uli Edel não possui qualquer prazer sádico em testemunhar a garota sofrer. Por um lado, suas imagens são cruas e diretas, por outro lado, elas preferem sugerir violências a mostrá-las. Nenhuma cena de prostituição é representada em detalhes, e as relações sexuais com o namorado são filmadas com grande pudor. Diversas sequências de consumo de drogas possuem cuidado nos enquadramentos para simular o ato sem expor demasiadamente o elenco.
Neste sentido, Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída se revela menos explorador e fetichista do que outros projetos realizados posteriormente. Esqueça os prazeres da humilhação em Réquiem para um Sonho (2000), os contorcionismos estéticos de Enter the Void (2009) ou mesmo o humor conformista de Trainspotting – Sem Limites (1996). O projeto alemão possui um olhar direto, porém empático, sem convidar o espectador a condenar os personagens, nem a se lamentar por eles.
Surpreendentemente, a narrativa carrega um teor melancólico. O diretor jamais emite um grito de alerta, nem observa a história pelo ponto de vista de Christiane. Pelo contrário, prefere admirá-la à distância, às vezes de maneira literal (a câmera se posiciona, muitas vezes, na calçada em frente), às vezes pelo fato de nunca antecipar seus próximos passos. Jamais sabemos o que se passa na cabeça da adolescente até ela executar seus planos — sejam eles tatuagens caseiras, a decisão de ir a shows de rock ou se prostituir para conseguir o dinheiro das drogas.
O projeto alemão possui um olhar direto, empático, porém sem convidar o espectador a condenar os personagens, nem a se lamentar por eles.
Em especial, chama atenção a presença de afeto neste projeto. O drama evita uma leitura determinista: Christiane não enfrentou uma fase decadente porque tinha pais ausentes, porque era rejeitada socialmente. Teria sido fácil apresentar os pais como figuras abusivas e violentas, e os colegas viciados, enquanto figuras manipuladoras que teriam seduzido a pobre garota. Ora, o adolescente tem uma mãe carinhosa à sua maneira, apesar de ausente. A filha desaparece durante várias noites, mas quando retorna, encontra um pedaço de bolo e uma mensagem da mãe.
Logo, o roteiro evita julgar moralmente as atitudes de terceiros pela situação de Christiane. Mesmo o namorado Detlef (Thomas Haustein) e seus colegas insistem que ela não consuma heroína, que evite este caminho. Os rapazes frisam a mensagem inúmeras vezes, mas escutam como resposta uma prova da autoestima da protagonista: “Tenho domínio total sobre mim mesma”. O desejo de experimentar estas substâncias se deve à vontade de provar sua capacidade face aos meninos. O mesmo vale para o sexo e a prostituição, decorrentes de uma escolha da garota.
Edel constrói uma série de sequências memoráveis. Ele efetua um excelente trabalho com os atores jovens, sem experiência prévia, deixando-os bastante confortáveis em cena. A corrida dos amigos num shopping center fechado, caindo voluntariamente pelos corredores; o encontro no topo de um prédio pela madrugada, e sobretudo uma cena próxima ao clímax, quando a câmera flagra em silêncio diversos adolescentes em situação semelhante àquela de Christiane, elevam a experiência e a qualidade do filme como um todo.
Nota-se um cuidado excepcional para as composições, além do uso de uma luz dura e contrastada (que permite esconder agulhas, pênis de clientes e outros elementos explícitos) e das cores pastéis dos ambientes em oposição à festa de estímulos nos shows de David Bowie. A despedida da menina com o irmão mais novo, que prefere morar com o pai, se traduz num instante singelo e potente, ornado por cores verdes e amarelas pálidas. Há uma sensação constante de amanhecer, ou talvez de fim de festa, nesta demonstração de prazeres efêmeros e tristes.
O terço final se dedica ao subgênero que os franceses chamariam de “descida aos infernos”. Neste instante, a protagonista experimenta os piores efeitos da droga, os maiores abusos e a separação de pessoas próximas. O longa-metragem ameaça se converter num panfleto de precaução: “Olha o que pode acontecer a você caso opte por este caminho”, parecem alertar as imagens. Felizmente, a narrativa abandona os rumos meramente didáticos. Existe maior preocupação em compreender estes jovens do que em condená-los, ou manifestar piedade por eles.
Algumas escolhas estéticas despertam apreensão, pelo potencial de explicitarem uma mensagem suficientemente clara até então. A trilha sonora se assemelha à música de um filme de terror; as frases de alerta se multiplicam (“Ou paro agora, ou morro”, “Ainda vamos sair dessa. Descobriremos como”, “Vamos conseguir isso juntos”), além das menções crescentes da crise de drogas nos jornais de Berlim. A insinuação de que o sexo gay seria o ápice da decadência de Detlef também provoca incômodo.
Além disso, fatores extrafilme prejudicam a experiência para o espectador — no caso, as legendas brasileiras desta versão comemorativa de 40 anos. É evidente a falta de intimidade dos tradutores com termos relacionados às drogas e ao sexo: os adolescentes consomem “bolas”, precisam tomar um “tiro” de heroína, e ganham dinheiro por uma “punhetada”. Frases como “Me olhe. Estou para ficar mal” e “Deixa-o totalmente frio” reforçam a impressão de uma tradução efetuada diretamente do inglês, carecendo de uma revisão — sobretudo em se tratando de uma versão que homenageia o clássico.
Pequenos tropeços à parte, isso não retira os méritos de um ótimo exemplar do realismo social, capaz de antecipar problemas amplos de uma época (a citação às doenças prevenidas pelo uso de camisinha) e de observar uma garota em posição tão atenta quanto distanciada. A solução final pode soar mágica, fácil demais (“Sobrevivi”, narra a protagonista algum tempo depois), porém lembra que o foco da narrativa não se encontra nas respostas para superar o problema, e sim no exame das circunstâncias sociais e psicológicas que o motivam.