O 51º Festival de Gramado jamais poderia prever tantos imprevistos, mudanças e mesmo uma tragédia ao longo desta edição. O evento já tinha contornado pequenas saias justas (o anúncio, nos palcos, de uma equipe que ainda não havia chegado ao cinema), e constrangimentos maiores (a tentativa do evento, por uma falha de comunicação, de encerrar o debate de Memórias da Chuva dez minutos após seu início, enfurecendo os participantes).
No entanto, o grande baque veio com a notícia do falecimento de Léa Garcia, dia 15 de agosto. A atriz tinha 90 anos, e se encontrava no Festival de Gramado precisamente para receber uma homenagem por sua carreira. Partiu no dia exato em que seria aplaudida, reconhecida, no Palácio dos Festivais. Ninguém sabia ao certo, então, como agir. Anulamos a homenagem? Mudamos a ordem da programação? Anulamos os filmes, os debates? Qual seria a maneira mais respeitosa de agir diante de um choque deste porte? Como honrá-la à altura de sua importância para o cinema brasileiro?
Os organizadores encontraram uma bela solução. Conversaram com Marcelo Garcia, filho da artista, que a acompanhava neste dia. Decidiram, juntos, manter o cerimonial, embora sem o reconhecimento conjunto a Laura Cardoso (esta segunda homenagem foi remarcada para o dia 18 de agosto). Gramado trocou as cores habituais por um preto sóbrio, e as apresentadoras se vestiram de luto. Na tela, vídeos relembravam a carreira de Léa Garcia enquanto se solicitava aos espectadores que se levantassem e batessem palmas. O posicionamento se mostrou respeitoso e sóbrio.
A agenda de filmes também seguiu o seu curso, com destaque para a exibição de O Barulho da Noite, de Eva Pereira, representante da mostra competitiva nacional. O longa-metragem representa a primeira obra de Tocantins a concorrer na categoria central em Gramado, algo que foi celebrado com aplausos calorosos e a presença de um grupo imenso de convidados tocantinenses. Lembrou-se da presença do excelente drama acreano Noites Alienígenas, em 2022, vencedor da 50ª edição. O cinema da região norte estaria conhecendo um apogeu?
Apesar do contentamento consensual com a representatividade e diversidade, o resultado se mostrou bastante fraco. O roteiro acompanha a vida de Sônia (Emanuelle Araújo), que vive com o marido e as duas filhas num casebre pelo interior de Tocantins. Quando a família recebe a visita de um sobrinho distante (Patrick Sampaio), surge um romance proibido entre a mulher e o desconhecido, conforme o marido (Marcos Palmeira) se ausenta para a folia local. Ao abrir mão do relacionamento estável em prol de uma aventura, a vida da mulher se deteriora até envolver a si e as filhas em cenários de estupro e pedofilia.
A denúncia dos maus-tratos contra crianças e adultos são válidas, é claro. No entanto, os letreiros (contendo erros de português, algo surpreendente para uma obra que passou pelos olhos de tantas pessoas) contendo dados a respeito do estupro no Brasil apontam para uma temática que estava distante do melodrama até então. Em outras palavras, este não era um filme sobre o estupro. Dialogava-se em especial com a crise da família patriarcal e o desejo sexual de Sônia.
Neste sentido, a abordagem incomoda bastante. A protagonista é punida por seus desejos: ao se entregar a uma paixão adúltera, abdicando do casamento com um sujeito declarado inúmeras vezes como bom e carinhoso, ela recebe o castigo por seus atos. O novo parceiro se mostra violento, abusivo, dominador. Chama-a de “fêmea”, puxa pelos cabelos, assume o controle (financeiro, inclusive) da casa. Está vendo o que acontece às mulheres que abdicam do lar e fogem aos laços do casamento? Paira um aspecto moralista, capaz de idealizar a figura do pai enquanto tortura a mãe. Nos corredores, muitas pessoas se questionavam como um filme de aparência tão machista poderia ter sido escrito e dirigido por uma mulher.
Além disso, diversas sequências soam mal filmadas e montadas — vide as pernas se acariciando sob a mesa, a fuga da menina durante um dia inteiro (embora a garota se encontrasse à vista, a poucos metros dos pais) e um enterro inesperado. A questão sobre o pai “lobisomem” também soa confusa. Os criadores explicaram na coletiva de imprensa o que este conceito representa em Tocantins, no entanto, a sugestão de um pai abusador não está presente no filme, e jamais se esclarece ao espectador.
De certo modo, a obra se conecta com outro drama fraco da competição: Angela, de Hugo Prata. Os dois filmes concebem mulheres sexualizadas, proativas na busca de seu prazer. No entanto, para viverem seus desejos, precisam se converter em mães omissas e negligentes, sofrendo represálias bárbaras por seus atos. Ambos os filmes exploram a dor alheia na chave do suspense, estimando que honram as duas protagonistas ao sublinharem o calvário sofrido. Precisamos questionar os limites do espetáculo em um cinema político moldado pelo poder do choque. O martírio é um humanismo?
Após noites tão coesas entre os filmes apresentados, que estabeleciam entre si diversas afinidades regionais, temáticas e de linguagem, desta vez imperou uma diversidade profunda de estilos. Junto ao filme-denúncia O Barulho da Noite, vieram o doce Ela Mora Logo Ali, de Fabiano Barros e Rafael Rogante, e o radical Remendo, de Roger Ghil.
Ela Mora Logo Ali chega a Gramado após uma longa trajetória em festivais, e comprova uma vez mais seu impressionante alcance de público: o drama conquistou os aplausos mais calorosos do público até o momento. O roteiro acompanha a trajetória de uma vendedora de doces pelas ruas de Rondônia. Ela vive junto à irmã mais nova e ao filho, um jovem com deficiências motoras e intelectuais. Ao descobrir a história mirabolante de Dom Quixote, contada por uma garota no ônibus, ela transmite a aventura ao menino, que se diverte com a trama. Começa então a busca pelo livro, ou por alguém que lhe conte a história completa de “Dom Caixote” — como a protagonista o chama —, visto que a vendedora não sabe ler.
Os autores estabelecem uma fábula acerca do poder do conhecimento e da literatura, capazes de empoderar a heroína e proporcionar alívio ao garoto acamado. A mão pesada em alguns trechos menos verossímeis (os pedidos para passantes lerem o livro na rua, as tentativas de encontrar a dona do livro para compartilhar o desfecho do romance) se justifica pela propensão ao realismo fantástico e pelo olhar irremediavelmente otimista dos autores. Diante da sucessão de mulheres torturadas e sofredoras da competição de longas-metragens, a figura leve e autoirônica da vendedora (Agrael de Jesus) representa uma forma de alívio ao público.
Enquanto isso, Remendo correspondeu a uma parcela de linguagem mais radical e queer, em preparação aos dois curtas-metragens programados para noite seguinte. O cineasta Roger Ghil apresenta a vida de Zé (Elídio Netto), homem que vive de pequenos consertos de aparelhos e objetos para os moradores do bairro onde ele vive. Enquanto desenvolve uma relação com a nova vizinha, lembra-se da paixão pelo antigo ocupante deste apartamento.
No entanto, a descrição desta sinopse pode despertar a impressão de uma narrativa muito mais clássica e linear do que ela realmente é. Saltam aos olhos as múltiplas opções intervencionistas de montagem, que incluem fotografias still (com referências não explicitamente conectadas ao conflito), trechos de videogame e outros inserts visando chamar atenção ao próprio dispositivo. A experiência é marcada pela estranha sensação de presenciar, com distanciamento, o furor alheio. O espectador assiste a pelo menos seis cenas de personagens rindo efusivamente, embora desconheçamos o contexto e não sejamos convidados a rir junto. Trata-se de uma abordagem visceral, alegre, ágil, mas também um tanto hermética de subjetividades queer.
A noite passou do cinema clássico-narrativo à colagem contemporânea, do olhar otimista ao pessimista. Flutuou entre celebrações leves da sobrevivência (Ela Mora Logo Ali) ou homenagens torturantes às torturadas (O Barulho da Noite). Mas a mulher que realmente brilhou foi Léa Garcia, ausente nos palcos, e presente na mente de todos.