A partir de 20 de julho, os cinemas recebem um filme português único e deslumbrante. Fogo Fátuo (2022), dirigido por João Pedro Rodrigues, se concentra na história de amor entre o príncipe herdeiro de Portugal, um rapaz ridicularizado pela família e pela sociedade ao redor; e um bombeiro negro, encarregado de instruí-lo quando o jovem da realeza decide, inesperadamente, juntar-se à corporação.
O diretor de filmes questionadores como O Fantasma (2000), Morrer como um Homem (2009) e O Ornitólogo (2016) retoma a linguagem queer e os afetos entre homens, desta vez dentro de uma fantasia musical. Os personagens cantam e dançam músicas preexistentes, que vão do tradicional fado à ópera de Mozart. Em entrevista ao Meio Amargo, ele explica a sua maneira particular de conceber as imagens, escolher os temas e abraçar as sexualidades múltiplas.
No Brasil, o filme é apresentado numa sessão dupla, muito especial, com o curta-metragem brasileiro Fantasma Neon, de Leonardo Martinelli — outro musical queer focado na performatividade dos corpos de trabalhadores, sobretudo aqueles negros e explorados pelo sistema.
Como considerou que elementos tão díspares quanto a corporação de bombeiros e a monarquia portuguesa pudessem conviver num mesmo filme?
João Pedro Rodrigues: O filme é uma espécie de conto de fadas, de fábula. Nas fábulas, mundos sociais diferentes encontram estranhas formas de se encontrar. Esta é a ideia: nem sequer há mais príncipes em Portugal. Esta família vive uma ficção do passado, enquanto o filho, suposto príncipe herdeiro, quer se libertar desta configuração de alguma forma. Ele consegue se libertar através do amor, que encontra na corporação de bombeiros.
O filme combina cenas muito naturalistas, como o treinamento dos bombeiros, e outras muito artificiais, pelas regras do musical.
João Pedro Rodrigues: Eu tento sempre partir do real para chegar a uma espécie de transfiguração do real. Eu digo que esse filme é uma fantasia musical, mas poderia ter dito que era uma comédia musical. Eu achei que fantasia seria melhor, porque é ela que sempre se encontra por trás da minha cabeça quando faço filmes. Como posso transcender o real, partindo dele? O cinema tem esse poder de transcender a realidade através da ficção. Existem outras ferramentas, mas a ficção é aquela que mais me interessa para construir histórias inventadas. O cinema é mentira, mas de que modo acreditamos na mentira? Como o caráter inverossímil da mentira se torna verossímil? Como podemos nos emocionar com essa mentira? Como criamos um mundo falso no qual se possa acreditar? É isso que eu tento fazer nos filmes. Ao mesmo tempo, é importante sentir o peso dos lugares, e os corpos dos atores. A fisicalidade é fundamental.
É interessante que, quando as músicas irrompem na trama, os cenários permanecem realistas. Temos uma floresta comum, uma garagem de bombeiros naturalista. O mundo não se altera para abraçar a fantasia.
João Pedro Rodrigues: A referência mais óbvia para mim, neste sentido, vem de Jacques Demy e suas fantasias, além dos musicais dos anos 1940, quando saíram dos estúdios. Penso em Um Dia em Nova York (1949), do Stanley Donen com o Gene Kelly, filmado em espaços reais, e que influenciou muito o Jacques Demy. A partir disso, quis escolher músicas variadas e preexistentes. Era uma escolha heterogênea, que incluía músicas tradicionais portuguesas, como um fado. Mas essas músicas são transgredidas. O fado final, “Embuçado”, tem uma substituição na última palavra da canção: ao invés de “E então cantou-se o fado”, dizemos “E então cantou-se o falo”. Além disso, o Paulo Bragança, que revolucionou o fado português, canta este trecho. Há ópera, com “A Flauta Mágica” do Mozart, e também uma canção infantil dos anos 1980 da era pré-ecológica, quando ainda não se falava da ecologia. A ideia era criar uma consciência da natureza nas crianças. Queria escolher músicas distintas que fizessem sentido juntas, e pudessem fazer a história avançar. Nos musicais, a cada vez que existe um número musical, a trama avança. Penso que o mesmo ocorre aqui neste filme.
A aptidão para o canto e a dança era um fator determinante na sua escolha do elenco? Como trabalhou com os atores para danças tão naturais?
João Pedro Rodrigues: Mais ou menos. A ideia não era trabalhar com bailarinos clássicos. No par principal, o André Cabral, que faz o bombeiro, é bailarino, mas tem formação em dança hip hop e ballroom, além do balé clássico. A profissão principal dele é bailarino, e tem trabalhado em diversas companhias. O Mauro Costa, que faz o príncipe, não tinha formação de bailarino, mas ensaiamos muito com ele junto a uma coreógrafa durante a pandemia. Na cena principal, do baile dos bombeiros na garagem, os demais bombeiros têm alguma formação de dança ou de performance. Procurei bombeiros e bombeiras que tivessem formações distintas. A ideia não era a perfeição, mas captar uma ingenuidade na forma de dançar. Não me interessava que fossem perfeitos.
Fogo Fátuo também me parece ser um filme sobre imagens. Ele evoca explicitamente as artes plásticas; e em algum momento, os personagens percebem que estão sendo observados pelo espectador. Como quis trabalhar esta autoconsciência da imagem?
João Pedro Rodrigues: O cinema é formado por imagens e sons, e a maneira de enquadrar corresponde ao modo de contar uma história. Para mim, isso é muito importante: a construção das imagens. O filme começa de uma forma mais teatral, com a consciência do público. Uma das questões do filme é a identidade: como queremos que os outros nos vejam e olhem para nós? No fundo, aquela família que se expõe tem a consciência de estar exposta. Ela vive numa ficção, apesar de já não haver uma família real portuguesa desde 1910. Nós próprios, atualmente, criamos ficções para mostrar aos outros. As redes sociais são um fenômeno flagrante disso: escolhemos como queremos que os outros olhem para nós. O filme trata disso também: o príncipe vai descobrir de alguma forma a liberdade fora do mundo familiar e tradicional, junto aos bombeiros, que têm consciência, eles próprios, de seus corpos e de sua profissão.
Eu não inventei a ideia do calendário de bombeiros nus, isso já existe em muitos lugares do mundo. Quando os bombeiros posam para estes calendários de homens, existe uma homoerotização deles próprios, e eles estão conscientes disso. Acho isso curioso. O mundo evoluiu de forma que começamos com os calendários Pirelli, com mulheres nuas, e agora tivemos uma liberalização que permitiu os calendários de homens nus. Eu também não queria que todos tivessem corpos perfeitos. Nem todos são super musculosos, e o próprio príncipe não é super musculoso. A comandante tem um corpo fora do padrão. Além disso, é uma mulher. Descobri que há uma única comandante mulher entre os bombeiros em toda Portugal. Achei que seria indicado que a comandante fosse mulher, com este corpo. Esta é uma atriz que eu gosto muito, a Cláudia Jardim.
Você sempre mostra a nudez e os corpos de maneira muito natural e frontal. Ao mesmo tempo, não existe nenhuma espetacularização, nem a vontade de seduzir o espectador a partir disso.
João Pedro Rodrigues: Sempre fiz filmes tentando ser honesto comigo próprio. Este nunca é o problema dos meus filmes. Quando comecei a fazer filmes, achei que havia uma falta de representação do sexo no cinema. Pensei muito no porquê disso, e isso leva à importância da fisicalidade nos meus filmes. Todos nós nos relacionamentos fisicamente uns com os outros. Agora estamos enveredando por um caminho oposto, onde a representação do sexo pode ter se tornado um tabu. Hoje há atores americanos que se recusam a se beijar, porque têm relações com outras pessoas. Isso não faz sentido nenhum para mim, porque são atores; é o trabalho deles. Não consigo compreender esta atitude. Acho o moralismo assustador: o mundo deveria ser mais aberto, plural e diverso. Essas diversidades se isolam umas das outras. A diversidade é mais bonita em conjunto, com as várias diversidades convivendo umas com as outras. Mas ainda há barreiras.
Fogo Fátuo também me surpreende pela representação racial. Fala-se de “meu preto preto”, “meu queimadinho de sol”. Há provocações raciais, além de um quadro com figuras negras, de papel fundamental na trama.
João Pedro Rodrigues: O passado colonial português foi feito pelos reis. O passado de quase todos os países europeus foi a monarquia. Essa figura da família real e do príncipe já tem essa carga nas costas. Portugal foi fundado por um rei, expulsando os árabes e os muçulmanos que viviam na península ibérica. Quase todos os países europeus foram criados pela expulsão dos povos preexistentes, por motivos de religião e raça. Por isso, este quadro é tão importante: ele simboliza o passado colonial português. A ideia do filme é que o amor entre os dois protagonistas possa de alguma forma sarar estas feridas que continuam abertas. Não é este filme que vai curar tudo, mas ele o propõe de modo irônico. Eles se insultam racialmente, um ao outro, como uma espécie de jogo sexual. Nesta cena de sexo, trazem o roleplay para a intimidade. É como se o amor e a intimidade pudessem ultrapassar essas feridas.