Até o dia 4 de novembro, os cinemas recebem uma nova edição do tradicional Festival de Cinema Italiano, que também conta com exibições online, pelo site oficial do evento. Um dos grandes destaques é o drama Brado (2022), dirigido, estrelado e co-roteirizado por Kim Rossi Stuart. O artista italiano interpreta Renato, homem que cuida de uma fazenda de cavalos decadente, e sonha em transformar um cavalo arredio num animal vitorioso, capaz de salvar os negócios. Em sua teimosia, reencontra Tommaso (Saul Nanni), o filho de quem se distanciou e que, contra a sua vontade, o ajuda no processo de recuperação.
O experiente ator veio ao Brasil para apresentar o filme, conversar com o público em São Paulo e encontrar a imprensa local. Em entrevista exclusiva ao Meio Amargo, ele explica sua relação com o universo dos cavalos, as dificuldades de acumular as funções de diretor e ator, e a maneira peculiar de preparar o jovem garoto ao papel:
Que intimidade você tinha com o universo das fazendas de criação de cavalos?
Eu cresci dentro de um centro hípico, dos 9 aos 13 anos. Era um ambiente muito semelhante àquele que aparece no filme, e ele me deixou muitas recordações. Entre as motivações que me levaram a criar este filme, tinha a vontade de reviver essas lembranças, e transmiti-las ao espectador. Mas muitas coisas nessa história aconteceram comigo de verdade: eu galopava de noite com meu pai por uma planície, e realmente tropecei numa cerca. Voamos longe, mas quando percebemos que ninguém tinha se machucado, rimos muito disso.
Muitas coisas nessa história aconteceram comigo de verdade.
Você mencionou sua relação pessoal com este ambiente, mas a relação entre pai e filho também é herdada de sua vida?
Sem dúvida, tem muito da relação com meu pai. É evidente que meus filmes transmitem algo fortemente íntimo, mas sempre digo que, na verdade, não posso considerá-los autobiográficos. Eu sempre parto de algo autobiográfico, mas depois passo esses elementos por uma peneira da ficção, e deixo sair dessa peneira tudo que seja uma citação exclusiva minha. Resta apenas aquilo que acredito ser capaz de tocar as pessoas.
A produção tem cenas complexas envolvendo acidentes de cavalos, instantes com cachorros e nos hospitais. Brado impressiona pela aparência de dificuldade destas sequências.
Na verdade, este filme não é feito com um grande orçamento. Mesmo assim, sentia que muitas cenas precisavam ser filmadas de maneira espetacular. Não podia abrir mão disso. Não queria renunciar à ideia de estar com a câmera móvel, à altura dos cavaleiros, acompanhando-o enquanto Tommaso cavalga e salta. Foi dificílimo colocar isso em prática, em vista dos recursos que tínhamos. Mas Matteo Cocco, o diretor de fotografia, me ajudou muito. É um rapaz jovem, fora de série, que já ganhou vários prêmios, inclusive o Oscar europeu.
Muitas cenas precisavam ser filmadas de maneira espetacular. Não podia abrir mão disso.
O papel de Renato sempre foi escrito para você mesmo interpretar? O que te interessava neste personagem, enquanto ator?
Eu nunca previ atuar nos filmes que dirigi. Mas sempre aconteceu algo misterioso que fez com que os atores previstos para atuarem nestes projetos precisassem abandonar os projetos de última hora, então eu assumi. É algo misterioso, de verdade, mas já aconteceu três vezes. Desta vez, o ator que deveria interpretar o pai sofreu com uma hérnia nas costas. Então, com certeza, percebi que eu deveria assumir este papel.
Renato é um personagem desafiador por ter atitudes extremas, envolvendo os cachorros, por exemplo. Não teve receio que o espectador tivesse dificuldade de se identificar com ele, torcer por ele?
Você está tocando em um dos maiores desafios desse filme. Mas acho bonito o filme partir desta figura difícil, apesar da apresentação desagradável inicialmente. Aos poucos, vamos manifestando sobre este homem um olhar compreensivo, acolhedor. Mas respondendo à pergunta, sim, tivemos medo que o Renato pudesse ser mal recebido. Tomamos muito cuidado para dosar este personagem, justamente por causa desta recepção.
Para atingir algo verdadeiro, eu precisei ter uma abordagem mais agressiva com Saul. Depois, à noite, eu ficava me sentindo culpado, pensando: “Pobre menino!”.
É importante acreditarmos na intimidade de pai e filho, e nas brigas deles. Como construiu esta intimidade com Saul Nanni?
Saul é um menino maravilhoso, que tem uma alma linda. Ele cresceu numa família muito equilibrada, cheia de afeto. Foi muito difícil para ele explorar os sentimentos de ódio e de raiva que este personagem vive. Essas cenas foram exaustivas para ele. Tem algumas cenas fundamentais em Brado: a primeira ocorre na entrada de casa, quando os dois extraem o pior sentimento um do outro, que estava acumulado há tempos. Para atingir algo verdadeiro, eu precisei ter uma abordagem mais agressiva com ele. Depois, à noite, quando a gente ia dormir, eu ficava me sentindo culpado, pensando: “Pobre menino!”. Mas hoje sei que ele tem muita gratidão em relação a mim, e está muito contente com o filme. Saul compreendeu que este trabalho era necessário para atingirmos este resultado. E preciso acrescentar que foi bem complicado para mim, porque eu acumulava as funções de ator e diretor. Em alguns momentos, os papéis se confundiam: Kim, o diretor, se comportava um pouco como Renato, o pai. E este comportamento afetava a preparação de Saul.
Você se considera um cineasta do controle, ou da espontaneidade? Você traz demandas muito específicas aos atores e à equipe, ou permite incorporar propostas nascidas dos ensaios?
Como ator, sempre acreditei que uma qualidade essencial dos intérpretes é aquela de se adequar ao diretor que encontra. É claro que o trabalho desenvolvido com os atores num projeto pode ser radicalmente diferente do outro. Às vezes, é necessário ter muito controle, e em outros momentos, a construção ocorre sozinha. Faço um pequeno convite, um curto estímulo, e os atores seguem sozinhos.
Este pai representa uma figura muito rara, extrema, mesmo na Itália. Ele constitui uma figura paterna antiquada.
Considera essa representação do interior e da masculinidade tipicamente italiana?
Humildemente, penso que o filme tenha muita facilidade de se comunicar com qualquer pessoa, de qualquer cultura. Até prova em contrário, somos todos filhos de alguém. Este pai representa uma figura muito rara, extrema, mesmo na Itália. Ele constitui uma figura paterna antiquada, que nada contra a corrente. Ele é cheio de limitações e defeitos — isso é evidente, e muito forte nele. Renato representa um ideal arcaico de força masculina. Ao mesmo tempo, ele tem uma qualidade que precisa ser reconhecida: ele é um pai capaz — até demais, neste caso — de tornar o filho autônomo. Em geral, e particularmente na Itália, muitos homens acreditam ter a única função de prover para os filhos. Às vezes, são estimulados pelas mulheres a fazerem isso, e fico me perguntando se seria parecido no Brasil também. Isso não permite que os filhos cresçam.
Como você se sente tendo os seus filmes, como diretor, exibidos no cinema ou via streaming?
Eu sofri um pouco a este respeito. Brado, como todos os outros filmes que já fiz, é pensado para as salas de cinema, mas sei do momento difícil que vivemos para o cinema nas salas tradicionais. Existe uma estranha ambivalência neste aspecto, e me desperta uma relação mista com as plataformas virtuais. São elas que tiram todo o nosso público, mas, ao mesmo tempo, são elas que nos permitem filmar mais, e chegar a outros públicos, fazendo com que os filmes tenham uma vida mais longa. É impossível fugir a essa contradição fundamental.