No início de 2022, a escolha da Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) para assumir a gestão da Cinemateca Brasileira veio como um alívio para a classe artística brasileira. Afinal, este grupo foi responsável pela intensa mobilização política durante o período de quase dois anos em que a instituição permaneceu fechada, devido à aversão do atual governo pelas pautas culturais. Desde maio de 2022, no entanto, o espaço abriu as portas novamente ao público, com diversas mostras e festivais, enquanto os técnicos retomaram os trabalhos de arquivo, preservação e restauração de filmes.
Mas como a SAC conseguiu se impor face às forças contrárias ao cinema brasileiro? Todas as atividades retomaram ao patamar de antes? Ainda existem riscos de incêndios — políticos, institucionais e literais — no horizonte? O Meio Amargo conversou com Maria Dora Mourão, atual diretora da Cinemateca Brasileira, e ex-professora da USP:
Podemos dizer que a Cinemateca Brasileira retomou todas as atividades que existiam antes da paralisação?
Em princípio, fizemos questão de colocar todas as áreas em funcionamento, mas com o mínimo de atividade possível. Nossa equipe ainda é pequena para um trabalho de maior envergadura. Somando todas as pessoas, inclusive a administração, vamos chegar agora a 50 pessoas. Para a Cinemateca, isso ainda é pouco. O que está com um funcionamento bastante precário ainda é o laboratório, que é muito importante. Temos um problema sério de telhado. Antes da nossa entrada, tivemos um vazamento. A Secretaria da Cultura tentou consertar, mas o problema continuou. Tiramos daquele espaço os equipamentos que ficavam embaixo das goteiras, então eles não estão em funcionamento neste instante. Começamos a fazer o diagnóstico, e algumas máquinas estão operacionais. Estamos restaurando alguns filmes: é coisa pequena, como três filmes mudos do Lévi-Strauss, em branco e preto. Assim, movemos a máquina. Já a parte de bibliotecas, documentação, revisão e difusão está em funcionamento. Abrimos a Cinemateca ao público em 13 de maio.
O último incêndio ainda está claro na memória. Historicamente, tivemos outros incêndios graves na Cinemateca. Estamos mais protegidos contra isso agora?
Eu gostaria que estivéssemos totalmente protegidos! Ainda não temos um laudo definitivo sobre o que aconteceu no galpão da Vila Leopoldina. O prédio ainda está interditado. Esse foi um presente de grego que ganhamos quando fizemos o contrato de gestão. Já trouxemos todas as cópias de filmes que estavam lá, além dos móveis e equipamentos pequenos. Agora vamos terminar de trazer equipamentos grandes, importantes para o laboratório. Pelo que parece, o que aconteceu lá foi um erro da empresa terceirizada que fazia a manutenção da climatização. Numa ponta, eles estavam arrumando um equipamento de controle. Na outra ponta, tinham algumas pessoas limpando dutos com um líquido inflamável. Isso deve ter escorrido e dado um curto no equipamento de climatização. Foi um erro humano, pelo que parece, e estes sempre podem acontecer, tanto Cinemateca quanto em muitos outros lugares, como o Museu Nacional.
Nossa preocupação específica era com o nitrato, que pega fogo sozinho. Depois de um ano e meio, quase dois anos com a Cinemateca fechada, sem nenhum técnico verificando o nitrato, havia um risco enorme que aquilo pegasse fogo. Mas não pegou — não ali, pelo menos. O nitrato está em condições adequadas, mas em 2016, por exemplo, ele pegou fogo. A Cinemateca estava aberta, em funcionamento. Perdemos um bloco inteiro. Temos bombeiros dentro da instituição, e isso é obrigatório. Mas precisamos estar sempre muito atentos, verificando constantemente os materiais. Por isso, precisamos de uma equipe em número suficiente para que toda essa verificação seja feita regularmente. Falo do nitrato, é claro, mas penso na verificação de todo o acervo. Mesmo em 2016, quando pegou fogo, também havia uma crise. O número de funcionários era baixo.
De 2013 para cá, foi crise atrás de crise na Cinemateca. O resultado é esse: incêndio, deterioração de material.
A crise começou em 2013, e a situação só deteriorou desde então. A ACERP (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto), que ficou dois anos lá, não era uma OS (Organização Social) ligada à área da cultura, e sim da educação. Pelo menos, eles mantiveram funcionários que já eram da Cinemateca. Mas a gestão era feita por pessoas que não eram da área da cultura, muito menos do cinema. A gente pode dizer que, de 2013 para cá, foi crise atrás de crise na Cinemateca. O resultado é esse: incêndio, deterioração de material. Agora, temos expectativas que os problemas não se agravem. Mas já foram cinco incêndios na história da Cinemateca. Enquanto não houver uma política pública desenvolvida de maneira adequada para a Cinemateca, pensando na memória e a preservação, ainda corremos riscos. Muita coisa pode acontecer e vai continuar acontecendo. É preciso de uma política de Estado, independentemente do governo. Ainda não conseguimos isso, infelizmente. Agora, está nas mãos de pessoas da área, que conhecem a Cinemateca há muito tempo. Eu comecei a ajudar a Cinemateca há 20 anos. Era membro do Conselho, fiquei na Sociedade Amigos da Cinemateca. Sou uma pessoa que entende um pouco dessa história. A grande maioria dos técnicos da Cinemateca foi formada na própria instituição. Agora está nas nossas mãos, mas ainda corremos riscos. Riscos sempre existem.
De que maneira a Sociedade Amigos da Cinemateca ajustou suas funções ao cenário político atual? Como tem sido a relação da gestão atual com a Secretaria da Cultura?
A SAC está fazendo aniversário de 60 anos agora. Ela foi criada exatamente para ser um braço de apoio à Cinemateca. Sessenta anos atrás, já era preciso ter uma organização como essa: civil, sem fins lucrativos, capaz de captar recursos à instituição. A época de ouro da Cinemateca, na história recente, foi entre 2008 e 2013, quando a SAC assinou um termo de parceria com o Ministério da Cultura. Durante cinco anos, um valor considerável foi repassado à Cinemateca. Junto aos projetos, via Lei de Incentivo, a Cinemateca conseguiu se destacar, inclusive internacionalmente. Em 2011, a FIAF (Federação Internacional de Arquivos de Filmes) fez um estudo sobre as Cinematecas do mundo, e nosso laboratório ficou em terceiro lugar mundial em quantidade e qualidade do restauro. Nossa Cinemateca já ficou entre as cinco melhores do mundo. Isso não é pouca coisa. Havia recursos e equipe naquela época: chegamos a ter cerca de 130 funcionários trabalhando na Cinemateca.
A SAC sempre acompanhou a Cinemateca, e só ela. As outras OS fazem outras coisas, gerenciando vários organismos ao mesmo tempo. Nós discutimos muito entre nós antes de entrar neste edital. Pensamos: se não entrarmos agora, pode acontecer com a Cinemateca outra vez o que acaba de acontecer com essa OS anterior. Poderia entrar uma OS sabe-se lá de onde, e teríamos mais dores de cabeça. Resolvemos entrar, mesmo nessa situação de incógnita, porque cada dia temos uma surpresa. Entramos e ganhamos. Antes disso, quando deu toda a confusão, com a OS anterior saindo e demitindo todo mundo, a SAC foi atrás de buscar recursos para oferecer à União. Assim, poderíamos entrar emergencialmente, para a Cinemateca não ficar completamente fechada. Conseguimos, mas demorou muito por causa da burocracia. Em novembro de 2021, entramos com apoio da Vale, que nos deu dinheiro para três meses emergenciais. Tivemos vinte funcionários fazendo um diagnóstico do que estava acontecendo, depois de tanto tempo fechado. Em janeiro de 2022, assinamos o contrato de gestão.
Nossa Cinemateca já ficou entre as cinco melhores do mundo. Isso não é pouca coisa.
Sobre a relação com a Secretaria do Audiovisual, e com a Secretaria Nacional de Cultural, vou dizer com muita sinceridade. Tem uma pessoa com quem temos um diálogo excelente. Ele é um ponto fora da curva, alguém que se sensibilizou pela situação da Cinemateca e nos apoia integralmente. É o atual Secretário Nacional de Cultura, Hélio Ferraz. É surpreendente, mas é verdade. Ele nos ajudou muito a resolver várias pendências anteriores, e tem batalhado conosco para conseguir os recursos para a Cinemateca. O contrato de gestão prevê 14 milhões de reais por ano. O próprio contrato nos obriga a captar 40% dessa valor. Eles sabiam que, com esse valor, a Cinemateca não funcionaria de maneira adequada. Então colocaram essa cláusula, que assustou muita gente. Não é fácil captar esse valor, de quase 6 milhões de reais, especialmente no Brasil de hoje. Mas decidimos enfrentar esse desafio.
O Hélio tem nos acompanhado, de maneira próxima, inclusive a buscar os recursos destes 40% a mais. Felizmente, ele está acima de qualquer questão política e ideológica. A nossa conversa tem um foco: a Cinemateca brasileira. Se eu penso A e ele pensa B, isso fica de lado. Lutamos pela Cinemateca. Se não tivéssemos encontrado uma pessoa como ele, não estaríamos onde estamos. Os problemas teriam sido muito maiores. Nenhum de nós o conhecia anteriormente, mas aos poucos, depois de algumas discussões, chegamos a uma excelente relação. É óbvio que ele é apenas uma pessoa, no meio da situação toda. A luta é de todos nós. Desde o incêndio, nunca se falou tanto sobre a Cinemateca na imprensa. A própria classe cinematográfica se movimentou mais, reivindicou mais. Internacionalmente, recebemos muitas cartas. Foi uma comoção, o que ajudou bastante a sensibilizar, inclusive o Hélio Ferraz. Assim ele viu a importância da Cinemateca, tanto nacional quanto internacionalmente.
Como tem sido feito o recorte curatorial da Cinemateca Brasileira? Ela abriu ao público com um filme inédito do José Mojica Marins, houve exibições inéditas do festival Varilux, depois a Mostra Espetáculo Polêmica Cultura… São propostas bem diferentes.
Estamos começando. Nossa intenção, de imediato, é atingir os velhos públicos. Queremos fazer com que os frequentadores de antes voltem à Cinemateca, mas também pensamos em ampliar o público. Por um lado, voltamos a ficar abertos aos festivais, a quem tiver interesse em fazer estreias, pré-estreias, o que for. Isso é fundamental. Por outro lado, gostaríamos de fato, com o passar do tempo, de ocupar as duas salas. Por enquanto, a sala Grande Otelo está em condições adequadas, mas a sala Oscarito ainda tem problemas. Com os recursos da Vale, vamos atualizar as duas. Gostaríamos de ter, em paralelo, uma programação mais típica de Cinemateca, propriamente dita, para cinéfilos, junto a uma programação mais palatável, ao público em geral. As pessoas do bairro, que vivem nos entornos da Cinemateca, costumam frequentar o jardim, mas gostaríamos que frequentassem também o cinema. A instituição fica fora do circuito, longe da Avenida Paulista, da Rua Augusta. Mas se a gente oferecer algo diferenciado, acredito que o público acaba vindo. E de fato, ele tem vindo: a exibição do filme do Mojica estava repleta, e a Mostra sobre ele, sem seguida, estava cheia. Fizemos a Mostra In-Edit, também cheia, e a Semana ABC, então, estourou a boca do balão. Aí, tinham os realizadores, os cineastas, as pessoas da classe propriamente dita.
Queremos fazer com que os frequentadores de antes voltem à Cinemateca, mas também pensamos em ampliar o público.
Nossa intenção é essa: enquanto não conseguimos fazer essa programação nas duas salas, estamos buscando o que no momento nos chama mais atenção. Por exemplo, fizemos a Mostra para comemorar o centenário do Alain Resnais. É um cineasta de nicho, não de grande público. Mas fizemos questão, porque ele tem uma relação próxima com quem se interessa por cinema. O Mojica é um cineasta de grande público. Ele também tem um nicho, mas é um nicho grande! Os jovens adoram o Mojica, e queremos que os jovens se acostumem a ir à Cinemateca. A SAC sempre se pautou pela diversidade de exibições ao longo das décadas. Mas, claro, tudo isso com qualidade. Quando eu dava aula, e mesmo antes disso, na vida inteira, eu veto filmes do Stallone, por exemplo. Schwarzenegger também não. Isso não tem condições! É preciso ter uma mínima qualidade para mostrar ao público que a Cinemateca é um lugar diferenciado. Precisamos fazer uma formação de público em paralelo. Isso é fundamental.
