No primeiro dia das mostras competitivas, a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes se focou em obras de vertente experimental, tão libertárias quanto libertinas. No centro das tramas, o público encontrou mulheres seguras de seus corpos e suas vivências, defendendo o direito ao prazer sexual, à maconha e à livre expressão política.
Na Mostra Olhos Livres, a cineasta Helena Ignez apresentou A Alegria É a Prova dos Nove, uma reunião de grandes colaboradores, amigos e familiares de longa data, para debaterem o atual estado do Brasil. No palco da Cine-Tenda, ela comemorou o fim de um governo opressor, especialmente para nosso audiovisual, descrito como “um cinema muito bom que sofreu enormemente”. Vestida com um casaco inspirado na bandeira nacional, declarou o “orgulho que temos agora de pertencer ao Brasil”.
Contra os sistemas opressores, a diretora imagina uma comunhão livre com a natureza. Enquanto isso, concebe um programa sobre a “xamã do sexo” sendo patrocinado e distribuído na televisão; a luta verídica dos padres católicos defensores da maconha; as performances de artistas não-monogâmicos. No elenco, Ney Matogrosso, Djin Sganzerla, André Guerreiro Lopes, Bárbara Vida e Dan Nakagawa compõem as peças deste tabuleiro.
O conjunto equilibra o aspecto juvenil e despojado com algumas cenas pouco rigorosas em termos de composição e estética. Assim, desperta a impressão de que o fluxo criativo foi privilegiado à coesão do discurso. Leia a crítica.
Na abertura da Mostra Aurora, destinada a diretores com até três longas-metragens no currículo, João Dumans (Arábia, 2017) apresentou As Linhas da Minha Mão. O documentário experimental se foca na atriz e performer Viviane de Cássia Ferreira. Ao invés de se concentrar em sua trajetória profissional ou pessoal, prefere uma exposição íntima, confessional, voltada à saúde mental e às experiências sexuais da personagem.
O filme ganha força conforme a narrativa avança e a personagem revela sua complexa psicologia. No entanto, passado o ápice das sequências em que Viviane detalha a crise de ansiedade e a bipolaridade, o filme hesita sobre as conclusões a tirar desta conversa, e a melhor maneira de encerrar o longa-metragem. Leia a crítica.
O dia foi especialmente rico para os curtas-metragens de temática LGBTQIA+. Eles compuseram os três títulos da Mostra Foco – Série 1. Em Os Animais Mais Fofos e Engraçados do Mundo, o diretor Renato Sircilli imagina um homem de 70 anos de idade, Jorge (Paulo Goya), faxineiro de um motel. Seu passatempo consiste em gravar clandestinamente o áudio de sexo dos frequentadores do estabelecimento, vendendo o material ilícito.
Parte-se portanto de uma premissa forte: a sugestão do sexo apenas através da construção sonora, ao detrimento da representação em imagens; o erotismo para além de rótulos, envolvendo casais de todas as idades, gêneros e corpos; e o fetiche de se apropriar do som alheio como forma de vício ou tráfico. Em oposição ao comércio de drogas e demais substâncias, Jorge vende um imaginário das pulsões de vida alheias.
O filme pega leve na representação da libido, e também nos desejos do vendedor e de seus compradores. O caráter fetichista é atenuado, desde o título pop e divertido (apontando a caminhos paródicos que o filme jamais ousa explorar) até a imagem dos corpos. A nudez de dois homens idosos é mostrada com naturalidade, porém o ato perverso de se apropriar da intimidade alheia resulta em mera curiosidade. Haveria um aspecto sombrio, tanto na solidão destes homens quanto no trabalho extenuante de um funcionário idoso, que o roteiro dispensa.
Ao final, ele soa como um misto de conto e fábula, no qual o percurso interessa mais do que o destino onde Jorge chegará a partir de tais práticas. Sircilli demonstra maior prazer em conceber este cenário improvável do que em levá-lo às últimas consequências. Privilegia-se um cinema da parceria e do afeto, minimizando meandros psicológicos e sociais.
A propósito de fábulas, Promessa de um Amor Selvagem, de Davi Mello, trilha caminhos semelhantes. A narrativa se foca em dois personagens que decidem explorar territórios desconhecidos em busca do prazer: um garoto entrando na festa de desconhecidos; e uma jovem, séculos atrás, embrenhando-se pela floresta.
Talvez eles existam no pensamento um do outro, ou sejam formas de vivências paralelas — o feminino e o masculino; a moralidade pré-contemporânea e a sexualidade atual. No mundo de hoje, as festas trazem uma apresentação de música erudita; no passado, o passeio pela mata revela uma festa com música eletrônica. Os opostos se completam.
A fantasia permite o reencontro de temporalidades e gêneros, num recurso que justificaria o rótulo queer em si próprio para além do beijo entre dois homens. O conceito se aplicaria à intercambialidade dos corpos e desejos, e ao enfrentamento das convenções através da identidade de gênero e da orientação sexual. Kelner Macêdo ganha a oportunidade de explorar os dotes dramáticos num plano fixo exigente; já Helena Albergaria encarna a mãe zelosa, sem a maquiagem nem os traquejos solenes que se supõe das mulheres pré-modernas.
O diretor apresenta uma disposição notável a romper com imaginários pré-concebidos (da festa, do encontro gay, da família tradicional). O cinema de gênero lhe permite efetuar a combinação preciosa entre mundo real e mundo possível, relembrando o cinema praticado recentemente por Fábio Baldo, Tico Dias, Enock de Carvalho e Matheus Farias.
Perto destas duas propostas narrativas, Lalabis soa ainda mais hermético. O curta dirigido por Noá Bonoba é composto essencialmente por indivíduos queer e transexuais, evocando fábulas e mitologias. A noção de corpos paralisados, assim como a imagem de olhos vidrados, avermelhados e purulentos, podem ser lidos pela incapacidade de ler ou acolher a diversidade social, proibida de se expressar.
No entanto, estas e outras possibilidades semânticas se devem mais a um esforço especulativo do espectador do que a um desenvolvimento do próprio discurso. Aqui, metáforas e alegorias se constroem de maneira crua, oferecendo pouca ou nenhuma chave de leitura ao espectador, que precisa traçar seus próprios caminhos de interpretação.
O projeto se sustenta por um valor retórico, ligado à força do gesto: no caso, a presença destes artistas controlando a criação e o ponto de vista. Seria bom que a ruptura evitasse os lugares-comuns do cinema panfletário (o personagem gritando verdades para a câmera), porém tais escolhas não retiram o mérito da experimentação.
O dia 24 de janeiro segue com a exibição de filmes inéditos como os longas-metragens Xamã Punk, na Mostra Aurora, e O Cangaceiro da Moviola na Mostra Olhos Livres.