A nona edição da Mostra de Cinema de Gostoso, em São Miguel do Gostoso (RN), teve um início sereno na noite de 4 de novembro. O gigantesco cinema ao céu aberto, instalado na Praia do Maceió, estava lotado de moradores locais, residentes das cidades vizinhas, além de realizadores e representantes da imprensa. As 600 cadeiras espreguiçadeiras estavam ocupadas, enquanto pelo menos uma centena de cinéfilos e curiosos ocupavam as faixas de areia ao redor, interessados na primeira noite do evento.
Havia motivos de sobra para arrastar uma multidão à praia. Em primeiro lugar, a presença de celebridades locais e políticos importantes, a exemplo da governadora reeleita Fátima Bezerra (PT), que elogiou a cultura, o cinema, e reafirmou a importância do Estado como patrocinador do evento. Ela se disse “sem medo de ser feliz”, em referência à eleição de Lula para um terceiro mandato. Aliás, as menções explicitamente políticas foram raras, pois desnecessárias: o sentimento de luta e o vigor das falas de resistência foram substituídos por uma sensação geral de alívio.
É claro que o cinema desempenha papel importante em sociedades democráticas, e que a cultura funciona como espelho de uma nação, de modo que ninguém precisava dizê-lo. “A democracia resistiu e venceu”, afirmou outro representante sobre o palco, na menção mais explicitamente política da noite. Pela primeira vez em alguns anos, pôde-se falar a respeito daquilo que se deseja para o Brasil, em oposição ao que não queremos e não aceitaremos mais. Pairava um clima de festa com o fim do governo de extrema-direita se anunciando num horizonte próximo. Sobrevivemos.
Para algumas dezenas de adolescentes, o foco da cerimônia de abertura se encontrava na estreia de Arrebentação (2022), curta-metragem produzido pelo Coletivo Nós do Audiovisual, projeto de formação da própria Mostra de Cinema de Gostoso. Com direção de Cristina Lima e Roberto de Lima, o filme apresenta os conflitos afetivos e financeiros de uma família de baixa renda, que se muda para outra cidade no intuito de cuidar melhor do filho, possivelmente no espectro autista.
Aos estudantes de cinema, esta representa uma oportunidade única: ver seu filme projetado de maneira oficial, numa tela de cinema, para uma quantidade expressiva de pessoas. É certo que ainda há muito a aprender em termos de técnica e narrativa, porém o projeto transparece uma saudável ambição ao combinar quatro histórias em paralelo, com uma câmera móvel, na mão, e evitando diagnósticos fáceis quanto ao estado do jovem protagonista. O grupo certamente está no caminho certo.
Arrebentação formou uma parceria frutífera com o longa-metragem exibido em seguida: Marte Um (2022), de Gabriel Martins. Ambos giram em torno dos conflitos de uma família desfavorecida, com um garoto sensível e tímido no papel central, ao lado de uma irmã mais velha e corajosa, além de um pai fanático por futebol, enfrentando problemas de bebida. Em especial, os dois filmes saltam de um ponto de vista ao outro, compreendendo as motivações de todos sem julgá-los moralmente. Apresentados em conjunto, formam um retrato interessante da família brasileira contemporânea.
O drama que representa o Brasil no Oscar 2023 combina a doçura com um afiado senso de crônica: o cineasta jamais utiliza o carinho pelos personagens para atenuar ou idealizar seus percursos, pelo contrário. A câmera os observa de igual para igual, evitando a hierarquia entre o filmante e o filmado. Aqui, os pais desejam que os filhos se tornem jogadores de futebol e as filhas saiam de casa apenas para se casar, ilustrando uma forma de pensamento que não corresponde mais à nova geração. O menino Deivinho deseja se tornar astrofísico; e a irmã Nina, que estuda direito, pensa em se mudar com a namorada.
O roteiro se constrói neste choque entre diferentes Brasis, quando é dado à juventude sonhar com algo além da fama instantânea para os garotos, e a dependência financeira do marido, para as meninas. As cenas do churrasco de aniversário, ceia de Natal, confidências de irmão e irmã numa beliche e as crianças pedalando uma bicicleta ladeira abaixo demonstram a capacidade de Martins em retratar um cotidiano de fácil identificação. Seremos representados por um filme excelente na premiação norte-americana.
No sábado, 5 de novembro, a programação da Mostra de Gostoso se expande: além do debate com realizadores, o evento inaugura a sua Tenda Panorama com sessões de Regra 34, Manhã de Domingo e Cordel da Vila: A Rainha Louca contra o Escandaloso. A noite traz dois longas-metragens ao ar livre: o cearense A Filha do Palhaço e o acreano Noites Alienígenas, além do curta-metragem Ela Mora Logo Ali.