No 73º Festival de Cinema de Berlim, o único longa-metragem selecionado para a Mostra Fórum (dedicada a filmes de caráter radical ou experimental) foi O Estranho, de Flora Dias e Juruna Mallon. Os cineastas partiram de uma investigação pessoal pela cidade de Guarulhos, em especial, a região onde foi construído o aeroporto. Descobriram não apenas um intricado funcionamento interno, mas também um histórico de natureza destruída e comunidades indígenas desrespeitadas.
A partir deste material, criaram a narrativa a respeito de um grupo de funcionários do aeroporto de Guarulhos, o que inclui trabalhadores reais do local, como Antônia Franco, e atores experientes, como Patrícia Saravy, Larissa Siqueira e Rômulo Braga. Através das perambulações do grupo, o espectador conhece mais sobre a complexa relação entre natureza, povos originários e capitalismo no Brasil. Leia a nossa crítica.
Durante a Berlinale, o Meio Amargo conversou com Flora Dias e Juruna Mallon a respeito do projeto:
Que relação já tinham com o aeroporto e a cidade de Guarulhos?
Juruna Mallon: São processos diferentes. Eu venho do Rio de Janeiro. Quando a gente decidiu fazer esse filme, partimos do princípio de continuidade de um processo iniciado com o longa-metragem anterior, O Sol nos Meus Olhos (2013). O personagem principal também lidava com uma mala. No caso deste filme, a gente decidiu que seria uma mala de aeroporto, com um funcionário de aeroporto. Era uma demanda de reconstituição de ficção. Fomos a Guarulhos fazer pesquisa, e tivemos a descoberta sobre as pessoas, os trabalhadores, e a realidade que cada um nos trazia. A partir disso, começamos a estudar a história de Guarulhos, e estas camadas históricas começaram a surgir. Assim eu me conectei de maneira mais profunda com o território.
Há dez anos, uma extensa e profunda pesquisa sobre a história de Guarulhos resultou num projeto de criação de um parque, o Geoparque Guarulhos. Isso nunca saiu o papel, infelizmente.
Esta história está disponível com facilidade à pesquisa?
Flora Dias: Sim, existe muita documentação. Além disso, há dez anos, uma extensa e profunda pesquisa sobre a história de Guarulhos resultou num projeto de criação de um parque, o Geoparque Guarulhos. Isso nunca saiu o papel, infelizmente. O grupo de pesquisadores era composto por arqueólogos, geólogos, historiadores, pessoas da sociedade garulhense. O Pai Vadinho, babalorixá que está presente no filme, fazia parte desse grupo. Por conta deste projeto, muita coisa sobre Guarulhos foi escrita. Uma arqueóloga foi uma grande fonte para gente, a Cláudia Regina Plens, que tem muitos artigos sobre a história de Guarulhos. Através de um artigo dela, muito tempo atrás, eu descobri que Guarulhos era a cidade do Estado de São Paulo com o maior número de terreiros de umbanda e candomblé. Essa foi uma surpresa para a gente, e acabou se tornando uma questão para o filme.
Juruna Mallon: O mesmo vale para as minas. Este foi o primeiro lugar onde se explorou ouro no Brasil. Não havia minério em abundância, mas foi anterior a Minas Gerais. O Geoparque mapeia esses sítios. É incrível descobrir que Guarulhos tinha grutas, e outras composições rochosas.
Flora Dias: Quando você começa a estudar a construção do aeroporto, ele já tem algumas poesias. Por exemplo, ele foi construído ali, mas não era um bom lugar para a construção de um aeroporto, porque tem muita neblina. Isso se justifica porque é um vale, a várzea do Baquirivu, cercado por montanhas. Guarulhos tem muita montanha, é uma parte importante da Cantareira.
Juruna Mallon: A gente queria inclusive filmar a névoa, que paralisa o funcionamento do aeroporto. Quisemos ter a névoa como personagem. Isso também ocorre no documentário fictício dentro da história, quando a personagem tenta dar um depoimento, mas sempre tem um avião que passa e a interrompe. Neste caso, seria o contrário: com neblina, é a natureza que se impõe.
Fiquei surpreso com a quantidade de temas que se articulam ali dentro: existem as questões indígenas, de religião, de direito trabalhista, etc. O roteiro já nasceu com este formato?
Flora Dias: Temos um roteiro que foi escrito durante muitos anos. Tudo o que está no filme entrou no roteiro, em algum momento, mesmo que tenha sido pós-ensaios. Quando chegamos para filmar, as coisas estavam articuladas através da narrativa.
Juruna Mallon: Nós atualizamos o roteiro de acordo com a pesquisa. Estas questões entravam, a gente incluía no roteiro, seguia pesquisando, etc.
Flora Dias: Se a gente não tivesse feito isso, o filme talvez tivesse muitas pontas soltas. Essa era uma preocupação nossa: como costurar todas essas coisas de maneira que não fique fragmentado demais?
Juruna Mallon: Na verdade, muitos elementos caíram. Filmamos muito mais: núcleos inteiros saíram no processo de montagem. A gente tinha uma parte dedicada aos imigrantes congoleses presos no Conector. A gente filmou, fez pesquisa. Fomos à associação para entender a situação deles. Mas isso saiu. Existia a preocupação de costurar todos os elementos, mas a gente já tinha se permitido, desde o começo, trabalhar com uma estrutura de mosaico. A gente queria tratar cada coisa de uma maneira específica, apostando que, no acúmulo dessas diferenças, o filme poderia se estruturar.
Quero que a Antônia e os trabalhadores de Guarulhos, do aeroporto, possam se ver no filme. Quero que a aldeia e a família de axé possam se ver no filme.
Este é um aspecto raro de O Estranho: ele aproveita ferramentas do cinema experimental, enquanto permanece acessível e narrativo.
Flora Dias: Isso se deve ao fato de ser um filme de personagens. É através deles que atravessamos todo este percurso. Sempre foi muito importante para a gente que os personagens despertassem empatia. Eu miro a minha mãe: quero que a minha mãe goste do filme. Mas também quero que a Antônia e os trabalhadores de Guarulhos, do aeroporto, possam se ver no filme. Quero que a aldeia e a família de axé possam se ver no filme. Se é experimental ou não, o importante é perceber que mesmo os elementos experimentais — o sambaqui, a onça, a voz da onça — ainda são personagens que apresentamos com uma bagagem. Eles são complexos, podemos sentir a presença deles na cena. Nunca queremos apenas criar uma sensação. Era importante que o filme fosse uma experiência sensorial, mas visando provocar um encontro com estes personagens que são entes, e não apenas humanos.
Juruna Mallon: Quisemos trabalhar a materialidade do som. Alguém nos disse, num debate, que achou que o som dava alguma materialidade e produzia sentido. O fato de nos agarrar na matéria fílmica tem algo que remete, de fato, ao cinema experimental. Mas tentamos achar um equilíbrio com a narrativa, especialmente pela figura da Alê, que serve como uma guia a seguir.
Gosto muito das interações dos personagens. Eles têm conversas verossímeis: as falas parecem condicionadas, mas com um estilo próximo à espontaneidade.
Flora Dias: Desde o princípio, a gente queria trabalhar com atores profissionais e não-profissionais. Esse desejo veio desde que a gente conheceu a Antônia, e teve vontade que ela participasse do filme. Era fundamental que todo mundo se sentisse confortável em estar junto. Fizemos um processo de preparação de elenco com a Helena Albergaria. Ao longo dessa preparação, o desejo era deixar todos confortáveis e seguros de estarem colocando o melhor de si. O processo da Antônia é lindo: ela é uma grande entusiasta do filme, uma grande amiga, parceira. Mas ela tinha suas dificuldades, inseguranças.
Juruna Mallon: Isso vinha da demanda de atuação mesmo. Era algo mais difícil. Durante os ensaios, a gente tinha diálogos escritos, mas deixamos o espaço para a Antônia e os não-atores se apropriarem das falas, colocando suas próprias palavras. Às vezes eles falavam coisas que a gente anotava, e depois incorporava. Nas filmagens mesmo, a sequência com as três funcionárias caminhando é bem espontânea, improvisada. A gente tinha algumas indicações, apenas.
Flora Dias: Para a Antônia, a gente dizia apenas: “Olha, agora precisamos falar deste tema aqui”. Não era uma cena mais roteirizada. Ela seguir por esse norte. Os atores profissionais eram ótimos para isso também. O Rômulo Braga tinha feito nosso primeiro filme, e por causa desta experiência, a gente sabia que esse tipo de proposta funcionava. O Rômulo estava o tempo todo dentro do personagem, improvisando, propondo diálogos com pessoas na rua, na estrada. Ele provoca, mas sabe escutar, e fazer com que as pessoas se sintam escutadas. Ele trabalha muito no silêncio. A Larissa também tem muito disso. No caso dela, não é o silêncio, mas a participação, a interação. Durante a entrevista com os jovens, ela realmente ficou encabulada. Isso era perfeito para o personagem. Era um desconforto que a própria Larissa sentiu.
Guarulhos tem empresas terceirizadas que licenciam a imagem do aeroporto. É caríssimo. Mas se você paga — e paga muito —, eles deixam filmar.
Filmar em Guarulhos parece particularmente complicado, sobretudo por se tratar de um filme crítico sobre o processo de construção do aeroporto.
Flora Dias: Não foi nada fácil. O primeiro contato que a gente teve com o aeroporto foi em 2016. Guarulhos tem empresas terceirizadas que licenciam a imagem do aeroporto. Não falamos com a GRU, nosso contato foi com uma empresa. Em 2016, era outra empresa, muito mais acessível. Guarulhos é caríssimo. Mas se você paga — e paga muito —, eles deixam filmar.
Juruna Mallon: Eles estão acostumados com publicidade, então os valores são absurdos.
Flora Dias: A gente filmou em duas etapas, e deixamos as cenas internas para a segunda etapa, para dar mais tempo de essa negociação acontecer. Depois a gente também foi mudando o roteiro para ter cada vez menos cenas no aeroporto, em lugares difíceis de acessar ali dentro. Filmar na pista é um inferno, por exemplo.
Juruna Mallon: Em certo momento, surgiu a hipótese de apenas não dar certo, e não conseguirmos filmar lá dentro de modo nenhum. Quando finalmente surgiu o acordo, a gente já estava na pré-produção da segunda etapa.
Flora Dias: Foi um pouco na marra. Os próprios funcionários que estava com a gente queriam muito que o filme acontecesse. Mas Guarulhos é uma corporação gigante, são mais de mil empresas.
Juruna Mallon: Os funcionários foram os primeiros a nos levar lá dentro, mostrando os espaços, os corredores. A gente teria muito mais cenas, a princípio.
Como interpretam o peso e a importância de trazer esta imagem do Brasil para Berlim, neste momento da nossa política?
Juruna Mallon: Ainda está cedo para dizer, mas achei o público bastante acolhedor. As perguntas no debate também foram ótimas. Como o filme foi um processo longo, ele atravessou estas mudanças políticas. Acompanhamos a transformação dos sindicatos, a terceirização da mão de obra, a questão indígena, e a questão da produção cultural no Brasil, que nos levou a refazer o desenho de produção. A exibição do filme aqui representa a capacidade do cinema brasileiro de se reinventar e resistir.
Flora Dias: No debate, tivemos a pergunta de um norte-americano negro, e a reação do Jesse, um canadense que mediou o debate. Os dois falaram mais ou menos a mesma coisa: Eu enxergo a história do meu país na história do país de vocês. De certa forma, o filme tem essa vocação de espelhar os processos de outros países que também foram colonizados. Por isso, pode gerar empatia.
Juruna Mallon: Ele tem como ponto de referência a figura do aeroporto, que existe em todos os lugares e significa um monumento do capitalismo. O filme fornece uma imagem bem peculiar do que é o Brasil. É ao mesmo tempo uma zona urbana, um aeroporto com muito trânsito, mas cheio de história por trás disso. Mostramos o quanto de história visível e invisível existe por ali. Essa é uma realidade em outros lugares também, mesmo que de forma diferente.
Flora Dias: Enquanto passava o filme, eu ficava me perguntando se algumas imagens poderiam soar estranhas demais para a cabeça de um europeu. A gente sempre quis filmar essa fronteira entre o aeroporto e a natureza colada nele. Isso é algo que acontece não só no Brasil, mas em países da Europa também. Na América Latina, esse fenômeno me parece menos controlado: a invasão do capital no território não é tão bem-sucedida quanto aqui na Europa, onde os territórios são violentamente domesticados.
Juruna Mallon: Tem uma cena que simboliza isso muito bem, que é a imagem do rio passando por baixo da pista. O conflito está ali.
O filme só trata destes assuntos, desta maneira, por conta de uma conquista do próprio movimento indígena, de falar de si, ocupar espaços de cultura, de comunicação, de política.
Pensando no público brasileiro, vocês estão otimistas quanto ao período atual? Acreditam que existe um público receptivo a obras como O Estranho?
Flora Dias: Com certeza. Agora existe um Ministério dos Povos Originários. Voltou o Ministério da Cultura. Para mim, é muito importante pensar que o filme só trata destes assuntos, desta maneira, por conta de uma conquista do próprio movimento indígena, de falar de si, ocupar espaços de cultura, de comunicação, de política. Em relação à questão indígena, com os apagamentos, silenciamentos, etnocídios e genocídios, o letramento já está acontecendo há muito tempo.
Juruna Mallon: O filme reflete isso. Alguém nos perguntou sobre a reflexão que a gente queria que o filme gerasse. Se tivesse que citar algo, seria a luta contra o apagamento histórico. É algo que os movimentos sociais já estão evidenciando há muito tempo.