Queer | “A identidade queer sempre foi parte da existência humana”, afirma Justin Kuritzkes

Desde 12 de dezembro, está disponível nos cinemas o romance Queer, dirigido por Luca Guadagnino (Me Chame pelo Seu Nome). A narrativa é adaptada do livro de William S. Burroughs, a respeito de um norte-americano viciado em ópio (vivido por Daniel Craig), radicado na Cidade do México durante os anos 1950. Lá, ele se apaixona por um rapaz mais jovem, um tanto indiferente ao seu afeto (interpretado por Drew Starkey). Mesmo assim, eles embarcam juntos em uma viagem por países da América do Sul para descobrir a nova experiência do momento — a ayahuasca.

O filme combina uma história de férias, um romance gay e uma aventura psicodélica por dentro da floresta. O resultado foi selecionado nos prestigiosos festivais de Veneza, Toronto e Nova York. Recebeu indicações ao Globo de Ouro e Critics’ Choice Awards, pela atuação de Daniel Craig.

O roteirista Justin Kuritzkes, que já havia trabalhado com o diretor em Rivais, conta ao Meio Amargo seu processo de adaptação, além de sua compreensão do termo queer.

Em que medida você quis respeitar a estrutura do livro de Burroughs, ou se permitiu alterar a narrativa original?
Foi uma mistura. Tentei usar ao máximo os diálogos de Burroughs, por exemplo, especialmente na primeira parte do roteiro. Mas um dos verdadeiros prazeres de escrever este roteiro foi que, duas semanas antes de começar a trabalhar nele de fato, eu conversei muito com Luca sobre nossa visão do filme. Discutimos como pretendíamos honrar o livro, e onde sentimos que era possível nos distanciar dele. Uma das primeiras coisas que determinamos era que, rumo ao final do livro, o autor abria uma porta que era rapidamente fechada. Mas nós queríamos abrir esta porta e atravessá-la, para descobrir o que existia do outro lado. Isso foi empolgante para mim porque, na verdade, este é um filme sobre duas pessoas em busca de conexão. Eles desejam conversar um com o outro em nível telepático. E não me parecia nada óbvio que, caso eles conseguissem tudo o que procuravam, os problemas estariam solucionados. Ainda seria complicado. Essa possibilidade era muito interessante para mim, partindo das premissas de Burroughs.

Qualquer pessoa que já amou alguém pode se identificar com estes sentimentos.

Como percebe a maneira como Lee e Allerton lidam com sua sexualidade?
Um dos aspectos mais intrigantes desta adaptação era o foco em uma comunidade muito específica, num momento bastante particular. É algo que não existe mais, como uma cápsula do tempo: falo dos expatriados norte-americanos queer na Cidade do México dos anos 1950. Eu sentia que, mesmo que as circunstâncias das vidas destes personagens fossem muito específicas, distantes da minha vida, ou daquela de todos que eu conheço, era possível compreender a psicologia deles instantaneamente. Eu me sentia capaz de me identificar com esta vontade de estar juntos, a saudade, este desejo profundo de se comunicar com alguém para além da língua, sem falar na tristeza de se deparar com os limites desta busca. Qualquer pessoa que já amou alguém pode se identificar com estes sentimentos. Então eu precisava navegar entre os elementos muito específicos daquela comunidade, e seu aspecto universal.

Burroughs também tinha muitos conflitos com a sua própria sexualidade, de modo que várias pessoas interpretam Queer como uma autobiografia. Este aspecto te interessava na hora de adaptar?
Interessava, no sentido de ser difícil determinar quando a narrativa de Queer termina, e quando as outras obras de Burroughs, e a própria vida dele, começam. O livro foi escrito nos anos 1950, e não pôde ser publicado antes dos anos 1980. Por isso, ele precisa ser visto dentro deste contexto. Mas para Luca e para mim, era fundamental não transformar o projeto em uma cinebiografia de William S. Burroughs. Não era a “história de um homem que existiu de fato”, mas a história de um personagem fictício criado por ele. De certo modo, Lee funciona como alter-ego de seu criador, e certamente tinha elementos inspirados na vida dele, com toques de autobiografia. Mas, em paralelo, o personagem foi voluntariamente criado para se distanciar de Burroughs. No final, eu sentia que devia fidelidade a este personagem, ao invés de William S. Burroughs.

Para Luca e para mim, era fundamental não transformar o projeto em uma cinebiografia de William S. Burroughs.

O conceito de queer é amplo, mesmo hoje. Acredita que sua percepção tenha mudado, desde a época em que o livro foi escrito, até agora?
Sim e não. A identidade queer sempre foi parte da existência humana, da cultura humana — que isso seja reconhecido ou não. A maneira como se percebe a identidade queer variou muito através das gerações; não se pode falar da compreensão do termo numa linha evolutiva reta. De certo modo, o termo queer tinha uma compreensão em 1950, e outra em 1985, quando o livro foi publicado, e ainda outra agora, em 2024, quando o filme é lançado. Ao mesmo tempo, a palavra significa a mesma coisa que sempre significou. Então muda a percepção sobre ela, mas o conceito permanece o mesmo.

Que pesquisas vocês fez para retratar o México dos anos 1950, além dos países sul-americanos e a experiência com a ayahuasca?
Fiz muitas pesquisas a respeito, especialmente no que diz respeito ao conhecimento da ayahuasca naquela época. Hoje, é algo muito mais comum e conhecido. Na parte ocidental, pelo menos, várias pessoas encaram a experiência como parte de uma prática turística. Chegam a gastar muito dinheiro para viajar até a América do Sul, conhecer um xamã e terem a experiência com a ayahuasca. Mas quando Burroughs investigou esta substância, ele foi um dos primeiros ocidentais a usar a planta. Era algo novíssimo. Existe uma cena no filme, quando mostramos que, mesmo no Equador, um botânico diz a Lee: “Não posso te ajudar com esta planta. Eu tenho cara de uma pessoa indígena na floresta?”. Isso era fascinante para mim. Eu só conhecia o uso atual que se faz da ayahuasca, na nossa cultura.
Mas conforme eu pesquisava o México e os países da América do Sul, eu precisava ter em vista que a Cidade do México vista em Queer existe apenas na mente de William S. Burroughs. Não é, necessariamente, um retrato muito fiel da Cidade do México que já existiu. Por exemplo, alguns bares e restaurantes do livro foram baseados em bares e restaurantes e outras cidades — da Áustria, de Saint Louis. Por isso, Luca decidiu que não adiantava filmar em locações, nem procurar algum canto que ainda se parecesse exatamente com a cidade do México dos anos 1950. Afinal, estávamos criando algo.

Hoje, a ayahuasca é algo muito comum e conhecido. Mas Burroughs foi um dos primeiros ocidentais a usar a planta.

A equipe criativa de Queer é praticamente a mesma de Rivais, lançado também este ano. Há Guadagnino, você, os produtores, montadores, diretores de fotografia, diretores de arte… Ambos os filmes lidam com a sexualidade reprimida. Como enxerga estas obras em conjunto?
Eu penso nos dois enquanto filmes-irmãos, pela maneira como foram construídos. Queer existe apenas porque eu passei tanto tempo em Boston, com Luca, criando Rivais. Quando eu assisto a Queer, eu me lembro dos dias passados dentro do hotel em Boston, escrevendo as cenas. Para mim, os dois são bastante conectados. No que diz respeito ao tema, eu só percebi depois de ver Queer pronto, junto do público, que tanto Rivais quanto Queer têm narrativas que crescem até um clímax onde os personagens expressam todos os seus sentimentos sem dizerem uma palavra sequer. Eles têm uma conversa através das ações, sem palavras. Mas só fui perceber isso muito tempo depois.

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