Na noite de 30 de novembro foram apresentados os últimos filmes da mostra competitiva de longas e curtas-metragens do 33º Cine Ceará — Festival Ibero-Americano de Cinema. Esta foi uma safra particularmente forte, alternando entre obras clássicas-narrativas (Sou Amor, A Mulher Selvagem, Alemanha, O Castigo) e títulos próximos do cinema experimental (Céu Aberto e Agora a Luz Cai Vertical), comprovando a aposta radical da curadoria. Trata-se de obras preciosas, que dificilmente seriam encontradas em outro festival brasileiro.
Um tema atravessou a edição: as famílias em crise — separadas, muitas vezes, fisicamente. As sessões apresentaram a mãe buscando reencontrar o filho retirado dela (A Mulher Selvagem, de Alán González), os pais procurando pelo filho abandonado de propósito (O Castigo, de Matías Bize), o filho afastado dos pais em nome de seu gênero e sexualidade (Sou Amor, de André Amparo e Cris Azzi). Além disso, houve pai e filho que não conversam desde a morte da mãe (Céu Aberto, de Felipe Esparza), a garota que sonha em mudar para outro país, longe dos pais (Alemanha, de María Zanetti) e a cineasta se reconectando com os abusos sofridos pela mãe (Agora a Luz Cai Vertical, de Efthymia Zymvragaki).
Estas histórias representam uma série de violências: a LGBTfobia, o machismo, o feminicídio, os distúrbios de saúde mental, o estupro, a tentativa de assassinato, a possível morte de uma criança pós-abandono. No entanto, a única trama disposta a apresentar estas violências em tela foi a brasileira Sou Amor, que comporta três ou quatro sequências perturbadoras de bullying homo-transfóbico, além de múltiplas imagens de sofrimento psíquico. Em geral, as produções dos países vizinhos (Argentina, Chile, Peru) preferem aludir às agressões, representada por metáforas.
No caso de Agora a Luz Cai Vertical, a diretora cita os maus-tratos sofridos com o companheiro, enquanto acompanha um homem que confessa ter agredido várias mulheres. Em contrapartida, nenhuma imagem de agressão é filmada, nem resgatada de arquivos pessoais. O filho de O Castigo teria agido de maneira impulsiva, quase provocando um grave acidente automobilístico, porém a cena será ocultada, e referida unicamente em diálogos. A narrativa de Alemanha começa após um surto de bipolaridade da irmã mais velha, apenas aludido entre os familiares. O afastamento e as brigas de pai e filho tampouco chegam à trama central de Céu Aberto. O transtorno da mãe solo em A Mulher Selvagem decorre de um grave vídeo, divulgado na Internet, ao qual o espectador jamais tem acesso.
Os roteiros se atêm, desta maneira, à antessala da crise, ou ao período pós-traumático. Evitam o choque pelo choque, ou ainda o apelo direto aos sentimentos. A bela seleção de longas-metragens — sem favorito absoluto, porém bastante coesa em sua totalidade — se baseia na representação pela ausência, ou ainda, no olhar focado, reflexivo e distanciado aos dilemas sociais. Mergulhar nas desigualdades e violência não implica, para estes jovens autores (muitos deles em seu primeiro longa-metragem) em lamentar ou gritar. Querem ponderar, lançando uma reflexão ao espectador. Somos nós que precisamos continuar o trabalho de elaboração quando sobem os créditos.
Os curtas-metragens também apostam nesta política dos afetos. A cadeia de Bença, de Mano Cappu, foi marcada pelos detentos que cantam juntos, se ajudam, fazem a barba um do outro. Não há intimidações nem ameaças à vista. O aborto em As Miçangas, de Emanuel Lavor e Rafaela Camelo, se reflete pela cooperação carinhosa entre duas irmãs. O Mal de Alzheimer em Aquela Mulher, de Marina Erlanger e Cristina Lago, evita crises e desesperos, privilegiando o abraço terno entre filha e mãe idosa. Embora lute por justiça para o marido assassinado, a mulher desamparada de Circuito, de Leão Neto e Alan Sousa, encontra amparo em uma policial solidária. Ainda que sofram a perseguição durante a Revolta da Cabanagem, duas mulheres negras se unem pela defesa de um bebê em Cabana, de Adriana de Faria.
Esta impressão não fica restrita ao Cine Ceará. A safra brasileira pós-pandemia (ou ainda pandêmica, considerando a data em que estes projetos foram gestados) tem transmitido a necessidade de união, abraços e cuidados entre próximos (sejam eles membros de uma família ou comunidade). Os dilemas sociais continuam latentes, porém os longas e curtas-metragens preferem observar o impacto desta situação no âmbito doméstico, familiar, local.
Estranho Caminho, de Guto Parente; Sem Coração, de Nara Normande e Tião; O Dia que Te Conheci, de André Novais Oliveira e Saudade Fez Morada Aqui Dentro, de Haroldo Borges, foram provavelmente as obras brasileiras mais premiadas e recompensadas em festivais nos últimos dois anos. Todas elas se voltam à reconexão social via afeto. Ao invés de filmes-manifestos, vêm os filmes-abraços.