Saudade Fez Morada Aqui Dentro (2022)

O olhar humanista

título original (ano)
Saudade Fez Morada Aqui Dentro (2022)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
107 minutos
direção
Haroldo Borges
elenco
Bruno Jefferson, Ângela Maria, Ronnaldy Gomes, Terena França, Wilma Macêdo, Heraldo de Deus, Vinicius Bustani
visto em
Mostra de São Paulo 2023

Os criadores da Plano 3 Filmes têm apresentado um conjunto muito coerente e particular de obras nos últimos anos. Depois de Jonas e o Circo Sem Lona (2015), de Paula Gomes, e Filho de Boi (2019), de Haroldo Borges, eles preservam o olhar voltado ao público infantil, com foco no universo escolar e nas dificuldades de passagem à fase adulta. Em todos os casos, efetuam uma crônica realista e afetuosa da classe média-baixa nas cidades do interior da Bahia. Trazem como marco o trabalho excepcional junto às crianças em papéis centrais e complexos, como raramente se encontra no cinema nacional.

O olhar permanece invariavelmente otimista. Acredita-se na boa vontade dos pais, no poder da arte, no valor da educação, no desenvolvimento progressista de moral e costumes. Afastando-se tanto dos criadores cínicos (os catastrofistas, niilistas) quanto dos sonhadores (defensores de que “basta acreditar” para atingir seus objetivos), o grupo habituado a trabalhar junto poderia ser descrito enquanto humanista. Sustentam uma convicção profunda no ser humano e na política, compreendida enquanto organização social. 

Aqui, todos os problemas surgem dos personagens, sendo resolvidos por eles mesmos, da melhor maneira que podem. Em outras palavras, nada de dilemas externos que os movam de maneira artificial. Quando Bruno (Bruno Jefferson) recebe a comprovação de sua cegueira iminente, devido a uma doença incurável, ele recebe uma atenção muito pragmática da mãe, do irmão e dos professores. Estes fazem canetas com texturas distintas, para que ele saiba a qual cor correspondem. Cobrem a bola de futebol de guizos, e tentam iniciar os cursos de braille o quanto antes. 

As revoluções serão internas, em detrimento do espetáculo mágico e reparador. O drama possui o mérito de evitar os clichês desgastados da representação da deficiência visual.

Em outras palavras, fogem tanto da busca por algum elixir milagroso e inédito para curar o menino (esqueça as narrativas de mães-coragens e os bálsamos da exceção, em estilo O Óleo de Lorenzo); quanto da autocomiseração purificadora em termos morais e religiosos. Não somos convidados a chorar com Bruno, nem por ele. Os autores o observam com respeito, de igual para igual, entendendo seus momentos de humor, de frustração, de tristeza. Abandonado num poço repleto de pedras, ele não recebe nenhuma ajuda (nem mesmo do roteiro) para escapar do local. Precisará encontrar forças sozinho.

Existe, portanto, uma forma de prudência política muitíssimo bem-vinda neste corpo de obras baianas — aqui, Haroldo Borges se encarrega da direção, dividindo o roteiro com Paula Gomes. Seus personagens não salvam o mundo, nem a si próprios; e tampouco se rendem servilmente ao que lhes aflige. As revoluções serão internas, em detrimento do espetáculo mágico e reparador — vide a aceitação do garoto de sua condição médica, a homossexualidade constante nos personagens coadjuvantes, o acesso minúsculo a uma educação inclusiva para deficientes.

A estética acompanha o preceito ideológico. Borges, também fotógrafo, evita embelezar as cenas com luz artificial, capaz de destacar os rostos contra o fundo dos cenários, ou reforçar atuações e valorizar texturas. Pelo contrário, abraça a luz natural em internas e externas, e deixa que as cores sejam dessaturadas, excessivamente ocres. Evita a maquiagem nos rostos e nos espaços, acreditando no valor intrínseco a estas pessoas e locações naturalistas. Em outras palavras, a miséria jamais será enfeitada para o deleite de um olhar burguês.

Em contrapartida, os movimentos de câmera se excedem na tremedeira e na movimentação. É interessante que, para driblar os tradicionais planos e contraplanos da cartilha clássica, a fotografia privilegie uma câmera capaz de deslizar de um rosto ao outro, conforme Bruno conversa com a amiga Ângela ou o irmão Ronny, por exemplo. No entanto, a imagem chacoalha até demais, fruto de um provável trabalho de câmera na mão, que chega a prejudicar a contemplação. 

A obsessão por close-ups dos atores também desperta questionamento, tanto pela escolha da janela em scope (pouco apropriada, tradicionalmente, ao império dos rostos), quanto pela dificuldade de retratar objetos ou partes do corpo que seriam valorizados através de uma decupagem mais segmentada. Bruno derruba uma bebida durante a festa, porém não a vemos, posto que a câmera continua rigidamente presa a seu rosto. Terena o puxa para um quarto reservado, ainda que jamais presenciemos o toque, o ato de apanhar o garoto pelo braço.

A proximidade excessiva do quadro soa particularmente prejudicial às cenas de forte impacto emotivo. Quando Bruno enfim se percebe cego, assim como na hora de revelar um segredo à melhor amiga, o distanciamento teria contribuído a diluir o alto teor emocional das cenas. Da maneira como são entregues ao espectador, estes instantes fundamentais podem se aproximar do folhetinesco, ou da exploração dos sentimentos para fins de catarse do espectador. Trata-se de sequências pontuais, no entanto, que jamais prejudicam a totalidade da abordagem.

Saudade Fez Morada Aqui Dentro possui o mérito de evitar os clichês desgastados da representação da deficiência visual. Nunca encontraremos o mundo embaçado, desfocado, nem os flashes luminosos e flares excessivos. O cineasta evita nos colocar no ponto de vista do garoto, mantendo um distanciamento prudente e respeitoso em relação à sua crise pessoal. Compreende, desta maneira, que o principal embate de Bruno reside no dilema pessoal de amadurecimento, não exatamente nos aspectos fisiológicos de sua condição.

Esta postura permite que o drama se abra a uma poesia discreta e eficiente. As cenas dos dois irmãos girando na bicicleta, de Bruno degustando a chuva, ou da mãe convidando o garoto a admirar o pôr-do-sol (embora ele ainda não entenda o valor desta proposta) provocam belezas simples que apenas os grandes cronistas conseguem captar. A ternura reside nos pequenos gestos do cotidiano, ao invés dos atos de heroísmo. 

São afetuosos os professores que imprimem provas com letras maiores para o aluno; o irmão que lê uma mensagem de texto para ajudá-lo; a amiga que “esquece” temporariamente da nova realidade de Bruno. Talvez, no final, a câmera se alinhe de fato à perspectiva de Ângela, mais do que de Bruno, Ronny, ou da mãe. É a amiga adolescente quem acompanha o herói com carinho e interesse, sem reduzi-lo à condição de “menino cego”. O herói ainda pensa no primeiro beijo, na namorada, no futebol. A doença nunca se sobrepõe à sua subjetividade.

Saudade Fez Morada Aqui Dentro (2022)
8
Nota 8/10

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