O Melhor Está por Vir (2023)

Espelho, espelho meu

título original (ano)
Il Sol dell’Avvenire (2023)
país
Itália, França
gênero
Comédia
duração
95 minutos
direção
Nanni Moretti
elenco
Nanni Moretti, Marguerita Buy, Mathieu Amalric, Silvio Orlando, Barbora Bobulova, Valentina Romani, Zsolt Anger, Jerzy Stuhr
visto em
Cinemas

No papel, O Melhor Está por Vir contém todos os temas que interessam ao diretor Nanni Moretti, e também a uma parcela considerável da cinefilia progressista que acompanha os filmes do italiano. O roteiro combina a paixão pela história do cinema com as discussões acerca da arte enquanto profissão. Além disso, discute o comunismo e seu legado num mundo tomado pelos mecanismos capitalistas.

Existem diversos motivos para gostar da obra, que transborda de paixões cinéfilas, metalinguísticas e de esquerda. Afinal, Moretti interpreta um excêntrico diretor de cinema, tentando criar uma obra independente e radical num mundo que pende à padronização extrema (incluindo citações diretas às produções da Netflix). Em outras palavras, um alter-ego idealizado, numa versão mimada e teimosa como apenas as crianças, as divas e os diretores mais privilegiados podem ser.

A metáfora recorrente do circo serve a comparar o cinema à manufatura, à arte de resistência num mundo que se esquece das formas tradicionais de expressão cultural. De acordo com esta perspectiva, o diretor e os atores seriam análogos a malabaristas e palhaços, lutando por uma forma de arte mambembe. A romantização impregna o roteiro que encontra espaço para citar nominalmente os filmes que parecem agradar ao diretor — caso de Lola Montès (1955), de Max Ophüls, e Caçada Humana (1966), de Arthur Penn.

Nenhum personagem existe para além da conexão com o diretor-sol. Por trás da homenagem ao cinema nacional, o diretor efetua uma grande homenagem a si próprio. 

Para completar a ciranda de afetos, o longa-metragem inclui um desfile de grandes nomes do cinema italiano. Atores fundamentais desta cinematografia caminham pelas ruas, liderados por Moretti sorridente, numa forma de reverência à importância deles. Nenhuma destas figuras possui qualquer importância dramatúrgica — trata-se de piscadelas, tokens de admiração. O diretor espera capturar, por osmose, o afeto que o público amplo possui por aqueles indivíduos. Posto que admiram Alba Rohrwacher, Jasmine Trinca, Giulia Lazzarini, Renato Carpentieri, Dario Cantarelli e tantos outros, gostarão da história onde seus rostos aparecem.

Os problemas se encontram na estrutura destinada a unir estas pontas, ou seja, na confecção do roteiro e na direção. A edição de Clelio Benevento se mostra caótica, talvez apostando que a fragmentação ou a brincadeira com a duração dos planos sirva para imprimir dinamismo. Uma simples cantoria entre marido e esposa no carro é dividida em uma dúzia de planos, em ângulos diferentes, sem que os cortes tragam qualquer perspectiva nova à interação. Aproximações no rosto de Moretti ocorrem de forma “cropada”, com estranhos cortes internos ao plano. O passeio de patinete pela cidade (o cartaz oficial é praticamente uma cópia daquele de Caro Diário, do mesmo diretor) se estende demais, despertando um questionamento acerca dos objetivos da mise en scène.

Isso sem falar numa interminável cena em que Giovanni (Nanni Moretti) decide interferir numa filmagem de ação alheia, durante oito horas, sem que ninguém o interrompa. Dezenas de profissionais simplesmente testemunham os ataques de estrelismo do personagem que nem sequer participa daquele projeto. O cineasta parece acreditar numa sequência hilária, no entanto, ela resulta interminável, cada vez menos verossímil. A modesta comicidade desta ideia se perde devido à insistência, a exemplo do sujeito que conta uma piada e repete a frase final, de novo e de novo, esperando potencializar o humor. 

Há excessos, faltas, desconexões do início ao fim. O que dizer do romance entre o casal adolescente, que some e retorna quando convém? Ou do personagem de Mathieu Amalric, cuja função se prova minimamente acessória? Como temer pela produção “em sério risco” de interrupção por falta de recursos, sem que o espectador fosse avisado de antemão a respeito da ameaça iminente? Como julgar as cenas musicais, abruptas e mal desenvolvidas em termos de enquadramento, ou de costura com o resto da trama?

O Melhor Está por Vir soa como um filme indulgente, o brainstorming de um diretor veterano. É evidente que um artista em início de carreira, munido de um projeto igualmente desordenado, não reuniria a verba suficiente para concretizá-lo, nem ganharia a vitrine prestigiosa da competição oficial no Festival de Cannes. Moretti chega à fase da carreira em que oferece filmes negligentes e mal desenvolvidos, porque ganhou da indústria o direito de fazê-lo. Existe luxo maior do que ter cadeira cativa na Croisette, independentemente da qualidade da obra preparada?

O resultado apresenta um despojamento raro no circuito independente, o que talvez se transmita numa aparência positiva de leveza e jovialidade. Entretanto, o mesmo frescor pode ser lido enquanto inconsequência, aleatoriedade e falta de coesão — a gosto do espectador. Muitas cenas aparentam ter sido filmadas pelo prazer de fazê-las. Trata-se de um poder bastante masculino: o mesmo mecanismo tão severo com novos diretores, especialmente mulheres, negros, LGBT e não-europeus, se faz profundamente indulgente com os homens brancos e privilegiados de grandes países europeus.

Caberá ao espectador determinar se o diretor-fictício, repleto de manias, insistências e caprichos, constitui um sujeito adorável ou irritante. Se ele representa uma forma de resistência da arte “pura” face ao cinema no atacado, ou apenas uma nostalgia por aqueles bons tempos que não voltam mais, numa forma de saudosismo que sempre estima o passado melhor do que o presente. Resta determinar se esta leveza se prova crítica ou, ironicamente, condescendente ao citar o partido comunista sem investigar seu legado na Itália contemporânea.

Uma cena se mostra exemplar do procedimento em sua totalidade. Durante a filmagem do filme-dentro-do-filme, Giovanni se recusa a sair de um enquadramento, posicionando-se em frente aos atores. O diretor de fotografia e os demais membros da equipe se preocupam com a imagem deste artista que insiste em entrar na imagem, em se sobrepor à trama, em converter-se no herói de sua ficção. Em O Melhor Está por Vir, nenhum personagem existe para além da conexão com o diretor-sol. Nenhum coadjuvante possui vida autônoma. 

Mesmo o desfile de astros italianos é coordenado por Moretti, na função do homem digno de reunir todas estas pessoas, de trazê-las apenas para uma figuração, enquanto favor a ele, por apreço a ele. O autor discorre menos acerca do cinema enquanto prática cultural inserida numa sociedade, do que sobre o cinema enquanto paixão pessoal. Não se tarda a perceber que, por trás da homenagem ao cinema nacional, o diretor efetua uma grande homenagem a si próprio. 

O Melhor Está por Vir (2023)
5
Nota 5/10

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