Seria possível iniciar a descrição deste filme por sua sinopse. Indicar os personagens principais, seus objetivos e conflitos. No entanto, Paixão Sinistra não parece ser feito para veicular uma história específica, ou no intuito de destacar uma mensagem em particular. Julgando pela experiência, talvez a construção do filme tenha surgido em ordem inversa: primeiro surge a vontade de trabalhar com tais recursos de linguagem, certas texturas e recursos estéticos, e só então se concebe a trama capaz de recheá-la.
O diretor João Pedro Faro propõe uma viagem que, por um lado, remete ao Cinema Marginal, e por outro, oferece escolhas de mise en scène próprias, possíveis apenas em tempos de um audiovisual digital e barato. Digamos que as falhas, ou deficiências de produção, são percebidas, assumidas e explicitadas à enésima potência. Em oposição a tantos criadores que buscam disfarçar ou atenuar as limitações do baixo orçamento, a turma da MBVideo a veste enquanto armadura da qual se orgulhar.
Isso significa que os ruídos captados nas ruas do Rio de Janeiro são incorporados e aumentados ao limite do incômodo. Bruno Lisboa, que assina a produção, montagem e som, se diverte ao transformar a intervenção “natural” numa extrapolação “artificial”. Cachoeiras e carros têm seus barulhos caricaturados até perturbarem os sentidos. Aí, quando se espera uma linguagem recorrente do choque, entra em cena a personagem cantando belamente, a cappella, sentada em sua cama. Os criadores sabem quando dar uma rasteira no espectador.
Um exercício de teor despojado, porém muito bem pensado e executado — um profissionalismo extremo por trás da aparência conveniente de amadorismo, ou do trash.
A jornada se desenvolve por meio desta estrutura de tensão e relaxamento, ou de impacto emocional e reflexão cinéfila e filosófica. Personagens exagerados ao limite do cômico transitam pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, sendo percebidos (junto ao resto da equipe, é claro) enquanto elementos dissonantes no meio. O artifício se confronta a um cinema documental, espontâneo, tal qual uma performance urbana. Como as pessoas reagiriam à ficção levada diante de seus olhos, no meio da rua, tal qual um cinema itinerante?
Enquanto a ficção caminha em direção ao mundo, aspectos do mundo fatual e científico se incrustam numa trama rocambolesca de sequestros e assassinatos. Conforme um chefe do crime planeja seus próximos passos, e outro mantém um jovem em cativeiro, uma narração em off explica a melhor maneira para cometer um assassinato. Onde enfiar a faca, de que maneira retirá-la? Quais seriam as vantagens do sequestro? A voz-guia lista alguns pontos ao espectador: a fuga da solidão, a atenção constante sobre si, a percepção de termos mais tempo livre do que imaginávamos.
Paixão Sinistra está repleto de referências, citações, inspirações diretas ou indiretas de outros filmes, além de correntes e chavões do cinema de gênero. Felizmente, jamais se limita ao easter egg, ao prazer simples de identificar elementos alheios numa narrativa inédita. Os estímulos são triturados e recombinados até se incorporarem de maneira orgânica à massa. Em nenhum momento soa como uma colagem dispersa de elementos emprestados a terceiros. A coesão autoral e conceitual salta aos olhos.
Supera-se, deste modo, a impressão frequente de que a linguagem experimental estaria fadada à dispersão, a uma liberdade caótica culminando na aleatoriedade. Faro constrói uma obra incrivelmente coesa, tanto em termos de ferramentas narrativas quanto de linguagem. Cada personagem retorna até concluir seu percurso; a invasão à casa de Watanabe ganha seu devido desfecho; o sequestro recebe um término bastante clássico. Os procedimentos de som estourado, da repetição de imagens e gadgets (óculos escuros, algemas, canivete, tapa-olho) e inserts (a dupla mascarada na floresta) se encerra com devido cuidado com a produção de sentidos. Nada aparenta ter sido feito por acaso, ou com desleixo.
Assim, comprova-se a possibilidade de um cinema de baixíssimo orçamento, dotado de impressionante rigor formal. A montagem imprime um ritmo cirúrgico, de grande dinamismo, porém sem converter a manipulação destes recursos num objetivo em si. Em outras palavras, Paixão Sinistra foge à armadilha de constituir mero gesto de vaidade da direção, ou uma diversão banal entre amigos. Nota-se uma reflexão excepcional para determinar onde se posiciona a câmera, de que maneira se unem duas imagens, como dirigir estes corpos-performance na cidade.
Em consequência, surge um humor sério, do tipo que surpreende pela gravidade com que anuncia absurdos. Menções a personagens e passagens da Bíblia se combinam com devaneios profanos (“Moisés viu a bunda de Deus”). Críticas ao autoritarismo brasileiro e à corrupção de um sistema político se transformam no relato sobre a “Operação Fu Manchu”. Faro jamais traz elementos externos para explodir o mundo, transformando-o numa viagem lisérgica pura. Ele prefere manter um pé no real, e outro, na fantasia. Assim, implode suas referências, contamina-as, parasita-as. Fagocita e se funde à forma de cinema que admira.
Aos atores, cabe a tarefa de representarem corpos presentes, que nunca atuam no sentido clássico do termo (de composição, psicologização, aprendizado do texto). Em contrapartida, oferecem-se à imagem, ao jogo, com um despojamento capaz de driblar tanto o deboche quanto a seriedade extrema das citações e da automportância.
Trata-se de um exercício de teor despojado, porém muito bem pensado e executado — um profissionalismo extremo por trás da aparência conveniente de amadorismo, ou do trash. Desta cinefilia aplicada, reinventada e questionadora, surgem as propostas mais instigantes do cinema brasileiro contemporâneo.