Dahomey (2024)

Bem-vindo à sua casa

título original (ano)
Dahomey (2024)
país
França, Senegal, Benim
linguagem
Documentário
duração
67 minutos
direção
Mati Diop
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Uma cidade de Paris tragicômica, representada por reproduções brilhantes da Torre Eiffel e passeios turísticos pelo rio Sena. A diretora Mati Diop abre seu filme com certo senso de humor, analisando uma noção kitsch de monumento e patrimônio cultural. Ao invés de se voltar aos grandes museus e construções históricas da capital francesa, demonstra sua perspectiva a respeito desta cultura da apropriação por meio da ilustração tragicômica do outro. A cineasta franco-senegalesa inicia as fricções de seu projeto desde os primeiros segundos.

Um letreiro colorido nos informa que 26 peças do reino de Dahomey, no Benim, foram devolvidas ao país, entre as mais de 7 mil obras roubadas durante o período de invasão francesa na África (termo importante, em detrimento de outros mais leves como “expansão”, por exemplo). Ela adota precauções éticas fundamentais: em primeiro lugar, nunca dá voz aos franceses que poderiam vangloriar de tal gesto de “humildade”. Macron será citado uma única vez, por um jovem beninense, de maneira negativa. Historiadores, ministros e agentes culturais parisienses nem sequer aparecem nas imagens. 

“Os franceses já fizeram demais”, parecem afirmar as imagens. Demos a voz, portanto, aos conterrâneos das obras usurpadas. Diop escuta brevemente o discurso das autoridades do país, porém faz questão de inserir dúvidas de estudantes quanto aos méritos do presidente na repatriação dos tesouros nacionais. Assim, foge à armadilha de vangloriar qualquer representante capaz de se beneficiar politicamente do episódio. Para ela, trata-se de uma vitória dos cidadãos.

Mesmo assim, o resgate levanta questionamentos durante uma intensa sessão de debates na Universidade de Abomey-Calavi. Devemos celebrar este fato, ou deplorar que seja uma ínfima parte do total? Seria apropriado deixar as peças num museu, ou precisariam ser devolvidas aos lugares de culto, onde foram dispostas inicialmente? Como agir daqui em diante, para que outras instituições francesas também devolvam peças beninenses? O próprio fato de conversarem em língua francesa seria um sinal de dominação cultural intrínseca às suas vidas?

Possui a consciência louvável de constituir o ponto de partida de uma discussão, ao invés de seu ponto final. Apresenta rara leveza e senso de poesia, inesperados em um documentário sobre peças de museu.

Diop observa, atenta, cada fala e reação. Registra apontamentos e desacordos; escuta professores e alunos. Admira tanto os acadêmicos engajados quanto aqueles que dormem em suas cadeiras, alheios ao debate (ou apenas cansados, vai saber). Oferece, desta maneira, o protagonismo exclusivo aos jovens beninenses, fugindo à tentação comum de emitir seus próprios pensamentos via narração em off, por exemplo. (Que alívio encontrar um documentário onde o diretor não sente a necessidade de comentar as próprias imagens ao espectador). 

Letreiros, entrevistas formais e materiais de arquivo fogem ao escopo do projeto, que prioriza a reflexão do agora a respeito dos acontecimentos de antes. As peças, que representam guerreiros ou contribuem aos rituais de luto, representam em si mesmas o tempo passado, sem a necessidade de recorrer a vídeos ou falas de antigamente. Por este motivo, a câmera segue acontecimentos ao vivo: ela está presente quando as peças são embaladas na França; e depois, quando chegam ao avião; em seguida, no Benim, sendo desembaladas no museu e avaliadas por especialistas locais. Acompanhamos este evento histórico e simbólico enquanto ele ocorre.

Outro recurso se torna particularmente importante ao documentário: a humanização das estátuas. Diop cria um personagem fictício, a estátua 26, descaracterizada na França, que evitou lhe tratar pelo nome. Diante de uma tela preta, a voz grave em língua Fon assume a postura de uma obra que descreve seu cativeiro, e o retorno ao país, que lhe enche de emoções ambíguas, entre alegria e apreensão. Ele tem “medo de não ser reconhecido, e não reconhecer ninguém”. Questiona seu pertencimento, depois de tanto tempo fora. “Dentro de mim, ressoa o infinito”. A obra se transforma numa maneira literal e material, assim como as próprias estátuas, de conferir voz ao povo prejudicado. 

Trata-se de um recurso lúdico, ainda que de tom sombrio, por dialogar diretamente com o espectador, provocando-o. Diante das demais imagens no museu, podemos nos sentir como meras testemunhas ou cúmplices de um processo histórico. Através da voz cavernosa da estátua, a diretora nos traz para dentro da discussão, que queiramos ou não. Além disso, retira outros estímulos imagéticos, de modo que nossa atenção se volte exclusivamente à voz e seu significado. Há um condicionamento muito firme da espectatorialidade neste instante.

Enquanto isso, Dahomey investe numa curiosa trilha sonora em estilo mágico, fantástico. A música se mostra propensa aos devaneios, serenando o sono de diversas pessoas que cochilam em frente às câmeras, mas também fornecendo ritmo ao menino que dança no museu, atrás dos adultos, e condicionando nosso olhar sobre as palmeiras e objetos solitários na parte externa do museu. Evitando sobrecarregar a experiência com falas e ensinamentos, Diop abre espaço à contemplação, ao silêncio e à reflexão. Nunca nos diz o que deveríamos pensar, preferindo levantar uma série de estímulos (estéticos, narrativos), para tirarmos a nossa conclusão.

É possível que o filme se encerre de maneira abrupta demais, em sua curtíssima duração. No entanto, em meio a tantas obras longas e arrastadas, pelo simples prazer de suas próprias imagens, o documentário pode ser louvado pela concisão e foco. A diretora sabe exatamente o que deseja registrar, e de que modo fazê-lo. Não permite outras intervenções, devaneios, nem uma expansão excessiva do debate (não se discute a atitude de outros museus, as demandas para novos repatriamentos, o contexto exato em que cada obra foi roubada).

Este projeto possui a consciência louvável de constituir o ponto de partida de uma discussão, ao invés de seu ponto final. Até por isso, jamais soa exaustivo, como seria um grande trabalho de pesquisa acadêmica. Apresenta rara leveza e senso de poesia, inesperados em um documentário sobre peças de museu. Com seu afiado olhar de cronista, atenta aos acasos e belezas do cotidiano, a cineasta percebe um ônibus que atravessa a cidade com uma frase pintada na lateral: “Bem-vindo à sua casa”. Desta maneira, silenciosamente, diz muito mais do que faria através de historiadores e especialistas. 

Dahomey (2024)
8
Nota 8/10

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