Uma biografia a respeito de Amy Winehouse precisaria necessariamente adotar um ponto de vista entre dezenas de opções disponíveis aos criadores. Seria uma jornada da juventude à morte, ou o recorte de alguns dias e meses específicos? Focada nas conquistas musicais, ou no percurso pessoal? A relação com as drogas e álcool seria motivada por alguma carência, alguma busca específica? Como representar o relacionamento problemático com o pai?
Back to Black, pelo menos, deixa suas escolhas claríssimas. Em primeiro lugar, privilegia a vida íntima à persona pública da artista. Suas canções surgem abruptamente, as letras aparecem prontas, as melodias nunca são construídas mediante esforço e dedicação. A arte se converte numa vocação divina, ao invés de um trabalho cotidiano — criadores talentosos receberiam do cosmos suas criações intactas, bastando interpretá-las com o coração. O argumento romântico do tipo “eu preciso criar”, enquanto necessidade orgânica e psicológica, é repetido duas vezes na narrativa.
Em segundo lugar, a diretora Sam Taylor-Johnson e o roteirista Matt Greenhalgh adotam a tese de que Amy foi uma filha exemplar, uma pessoa gentil e talentosa, corrompida por um namorado abusivo. Embora o diálogo traga algumas vezes a ideia de que ela desejou consumir álcool tanto quanto Blake (Jack O’Connell), a montagem e o roteiro insistem na tese da má influência exercida sobre uma garota apaixonada. O namorado se converte no sujeito mulherengo, malandro, aproveitador do dinheiro e carência afetiva de sua companheira.
O filme adota a tese de que Amy foi uma filha exemplar, uma pessoa gentil e talentosa, corrompida pelo namorado abusivo. Pelo menos, Black to Black encontra algumas virtudes na decisão de jamais copiar Amy Winehouse.
Em terceiro lugar — e, talvez, mais importante de todos —, o longa-metragem isenta o pai Mitch de qualquer responsabilidade pelos obstáculos na carreira de Amy. Qualquer pessoa minimamente informada conhece as inúmeras acusações feitas contra o pai, empresário e artista, interpretado por Eddie Marsan enquanto o sujeito mais acolhedor do mundo. Esta versão isenta e um tanto covarde dos relacionamentos familiares também desperta suspeitas a respeito do ponto de vista ético do projeto na totalidade.
Por estas questões, o projeto tem sido descartado de maneira inequívoca por fãs da cantora, além de críticos e espectadores. Trata-sem de razões compreensíveis, convenhamos. Como sustentar a tese de que “ela era mais do que uma dependente química” se o próprio filme insiste tanto neste aspecto? Como defender que o filme inteiro seja visto pela perspectiva de Amy se há inúmeras cenas de Blake e os amigos conspirando contra ela à distância, ou se a relação com os fãs beira o inexistente?
Pelo menos, Black to Black encontra algumas virtudes na decisão de jamais copiar Amy Winehouse. No papel principal, Marisa Abela não utiliza prótese no nariz para se assemelhar ao original, nem incorpora cada trejeito da artista. As músicas são reinterpretadas com a voz de sua intérprete, que certamente faz acenos aos maneirismos da cantora, porém, permite versões que aludem às gravações originais ao invés de imitá-las. A atriz faz o possível para fugir ao cosplay, à armadilha do baile à fantasia.
Sam Taylor-Johnson também busca formas criativas de aproveitar as canções, seja em off, na forma de comentário sobre um estado emocional, seja numa estranha cena de videoclipe, quando Back to Black se converte numa sequência em modos Sex and the City. Rehab ganha tantas intervenções e modificações que se aproxima de uma composição original. Havia a preocupação justificável de construir traços autorais, sem permanecer refém de um imaginário reconhecido. As melhores biografias ainda são aquelas que evocam seus personagens ao invés de acreditarem na semelhança enquanto forma de virtude cinematográfica.
Um raciocínio semelhante se aplica a figurinos e acessórios. Em sua linha temporal (cuidadosamente estudada, diga-se de passagem), a direção de arte compreende que o estilo consagrado da cantora se forjou passo a passo, ao longo dos anos. Portanto, ela não surge com o cabelo alto, o lápis de olho e os vestidos apertados de imediato, acrescentando cada um destes traços durante o percurso construído com mais atenção do que a própria discografia de Amy. Curiosas prioridades.
No entanto, outras metáforas e escolhas trazem um aspecto menos profissional ao resultado. O dente grosseiramente pintado de preto soa como uma reflexão tardia; o símbolo do passarinho preso na gaiola beira a infantilidade. A longa sedução durante a cena de sinuca também gera questionamentos pela propensão a transformar Amy numa garota excessivamente ingênua, desprovida de malícia e disposta a se atirar no primeiro bad boy que lhe oferecer migalhas de afeto.
Talvez os melhores instantes decorram, inesperadamente, do relacionamento com a avó Cynthia, interpretada com ternura e dignidade por Lesley Manville. Nestes instantes de respiro, o filme se priva, enfim, de julgar Amy Winehouse para enxergá-la longe de Blake, longe dos paparazzi, longe do pai angelical. O roteiro encontra a possibilidade de interpretá-la para além das categorias pré-concebidas. Pena que os autores não tenham encontrado mais frestas de autonomia como estas em sua doce lamentação por uma vida perdida.