Votos (2022)

Obediência

título original (ano)
Votos (2022)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
71 minutos
direção
Ângela Patrícia Reiniger
visto em
Cinemas

Monges, noviços, freiras, abadessas. O que os leva à vida religiosa, em pleno século XXI? Eles sentem falta do mundo fora da clausura? Como conseguem cumprir com os votos de pobreza, castidade, obediência e estabilidade? A diretora Ângela Patrícia Reiniger parte de uma curiosidade bastante válida: a vontade de compreender o outro, e escutar suas motivações sem julgamento moral. Poucas obras decorrem de uma abertura tão generosa à alteridade.

Votos também se gaba, durante o próprio longa-metragem, de conseguir acesso raríssimo à parte interna dos mosteiros, geralmente proibido para visitas e registros audiovisuais. Os habitantes destes espaço mantêm contato limitado com o mundo externo, razão pela qual a chegada de uma equipe de filmagem equivale a uma concessão excepcional. Esta seria, portanto, a oportunidade de acompanhar o que realmente ocorre no interior das instituições religiosas, correto?

Não exatamente. Para um projeto tão contente de sua proeza de produção, surpreende o resultado tímido extraído de tal visita. Em primeiro lugar, no que diz respeito às escolhas estéticas. A cineasta evita explorar de fato a geografia e os espaços internos, limitando-se aos planos aéreos, com drones, e às conversas de pessoas sentadas em uma biblioteca ou pátio. Por vezes, a câmera na mão treme excessivamente, quando se mostra pouco preparada para captar imprevistos — caso em que teima a ajustar a luz durante o plano, ou enfrentar o eco do som direto. Surpreende que tantas imagens com problemas sonoros e de luz tenha sobrevivido à montagem.

A cineasta evita explorar de fato a geografia e os espaços internos. Além disso, faz prova de uma passividade injustificável face aos personagens.

Outras escolhas são ainda mais questionáveis: por que criar o plano subjetivo de uma freira se ajoelhando durante seus votos? Que efeito se pretendia obter com tal ficcionalização? Mesmo na parte interna, a câmera nunca segue o dia a dia dos habitantes, precisando acreditar naquilo que os personagens testemunham em entrevistas. Afirmam que tudo corre bem, que o ambiente se limita a rezas e cumprimento de regras monásticas, e se adaptam como podem. A direção se contenta com estas respostas tão gentis quanto vagas. As interações se assemelham com um telefonema ocasional àquele primo distante que não vemos há anos, respondendo-nos que “está tudo bem, sim, vida corrida, mas tudo andando”.  Ambos os lados se despedem, ao telefone, cientes de terem cumprido suas funções de educação, embora desconheçam por completo a subjetividade alheia.

Em segundo lugar, a direção faz prova de uma passividade injustificável face aos personagens. Jamais efetua perguntas possivelmente espinhosas, controversas, relacionadas à hierarquia, aos desejos, às imposições. A autora parece questionar basicamente o motivo pelo qual fizeram os votos religiosos, e como se passa a rotina lá dentro. Estas duas perguntas introdutórias dominam o projeto inteiro. Fica evidente a falta de intimidade com os personagens, que nunca ganham a oportunidade de confessarem algo para além do script oficial da experiência monástica. Seus sentimentos reais, seus episódios curiosos ou inesperados na clausura, estão fora da narrativa.

Logo, Votos se mostra refém da versão dos fatos que seus personagens desejam contar. Reiniger escuta atentivamente as confissões afáveis, porém se nega a fazer qualquer investigação por conta própria. Os protagonistas podem transmitir, sem fricções ou questionamentos, a mensagem que lhes convier, razão pela qual o resultado se aproxima de uma peça institucional dos monastérios. A crer nas poucas falas, o quotidiano na instituição se limita a paz, Deus, respeito, tolerância, paciência. Ora, qual instituição contemporânea seria verossímil a partir de um retrato tão ilibado?

Neste sentido, os verdadeiros votos de obediência provam-se aqueles da mise en scène. Transmite-se a impressão que a condição para o acesso (ainda bastante limitado) ao interior da imponente construção tenha sido a imagem elogiosa, casta e funcional deste espaço. Mesmo aqueles que decidiram romper com os votos e voltar à sociedade declaram que o fizeram por motivos pessoais, por ser difícil cumprir com tamanha rigidez e disciplina. Aparentemente, todos saíram com abraços, afagos e desejos de “volte sempre”. Seu período de dúvida, de insegurança permanece longe da atmosfera pacífica da obra.

Em paralelo, desconhecemos o posicionamento político ou ideológico dos personagens religiosos (logo no Brasil de 2024!), as eventuais disputas internas por poder ou hierarquia, as fugas às regras e suas punições. De onde surge o financiamento destes espaços? Como as organizações se transformaram com o passar das décadas? Com a mudança de governos, e durante a pandemia? Obviamente, falas a respeito da sexualidade estão interditas. Todos sustentam o argumento-padrão de que já pensaram em ter filhos e esposas/maridos, porém optaram por esta vida e se encontram felizes assim. Mesmo a fé em Deus soa distante, mencionada de maneira protocolar por um ou outro.

Votos parece interessar mais quando notamos, rapidamente, um grupo de religiosos jogando futebol. No entanto, a cena logo se interrompe, e retornam à pose casta de segundos atrás. Descobrimos que a instituição possui WiFi, mas que conteúdos acessam os moradores? É curioso como, mesmo depois de entrarmos no monastério, ainda nos sentimos do lado de fora, à distância, assistindo a uma comportada reportagem na qual autoridades religiosas defendem a validade de suas escolhas, com a ajuda do cinema enquanto suporte “neutro”, sem questionamento nem ponto de vista. 

“Vai ser importante, as pessoas vão saber como é a vida aqui dentro!”, comemora uma noviça estrangeira — caso em que o filme efetua um estranho autoelogio no interior do discurso. A obra acredita estar revelando algo bastante novo e precioso, embora ofereça ao espectador pouco mais que o senso comum do cristianismo. À pergunta “por que você entrou no monastério?”, a resposta parece ser, em uníssono: “Porque eu quis. Era isso que eu procurava”. Ponto. Despedimo-nos deste primo distante, sabendo que está bem, mas desconhecendo como se passam, de fato, os seus dias. 

Votos (2022)
3
Nota 3/10

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