Acontece uma vez por ano, mais ou menos. Uma grande produção, repleta de estrelas e dotada de orçamento faraônico, chega às telas de cinema e surpreende pela quantidade de defeitos e lacunas. Nada funciona: a direção, o elenco, a fotografia, a direção de arte, o roteiro. Fica difícil destacar algum fator positivo, de modo que espectadores e membros da indústria se questionam: o que houve? Como a obra de um estúdio rico e experiente, elaborada por profissionais tão qualificados, pôde dar tão errado?
John Carter: Entre Dois Mundos, Peter Pan (2015), Máquinas Mortais, Uma Dobra no Tempo, Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada É Impossível e O Cavaleiro Solitário foram alguns destes exemplos. Com orçamento superior a US$120 milhões, Borderlands representa o choque de 2024. Cate Blanchett, Kevin Hart, Jack Black e Jamie Lee Curtis comandam o elenco. Na direção, outro nome conhecido: Eli Roth. A Lionsgate se encarrega da produção. Embora adaptações de videogames sejam particularmente desafiadoras em termos de bilheteria, este caso supera com facilidade os problemas encontrados em Assassin’s Creed e Warcraft: O Primeiro Encontro de Dois Mundos.
A trama se inicia com a rápida apresentação de Pandora, um mundo abandonado e repleto de perigos. Logo, uma cínica caçadora de recompensas (Blanchett) aceita resgatar a pequena filha (Ariana Greenblatt) de um magnata da tecnologia (Edgar Ramírez), sequestrada por forças do mal. Ela se vê obrigada a retornar à terra de sua infância, onde ainda sofre com o afastamento de sua mãe (Haley Bennett) quando criança. A premissa soa, de fato, profundamente genérica, idêntica a centenas de projetos do gênero. Ora, isso não impedia os demais filmes de alcançarem resultados mais satisfatórios.
O terço final, ostentando revelações e efeitos visuais extravagantes, sela o destino de um filme incapaz de perceber que ele constitui a própria piada. Não rimos com os personagens, mas deles.
Eli Roth demonstra grande dificuldade em determinar o tom desta trama. Ele navega entre a aventura séria, a paródia da mesma aventura e o filão das produções de super-herói adolescentes, movidas por piadas escatológicas e sexuais (o marketing nacional tem forçado a comparação com Guardiões da Galáxia). Os atores hesitam entre levar seus personagens a sério, ridicularizá-los e infantilizá-los. Devem dizer suas falas como se o futuro do universo estivesse em jogo, ou como se participassem de uma esquete de Saturday Night Live? Esperem muitas piadas pueris sobre “purê de vômito”, caganeira provocada por eletricidade, urina dentro da boca e um robô gritando: “Ai, minha cuequinha!”.
A construção de cenários, luzes, figurinos e objetos transparece indefinição semelhante. Reconhece-se de imediato um galpão de estúdio onde deveria ser um planeta distante. O cenário de desolação se limita a meia dúzia de rochedos sobre a terra seca. A partir de uma premissa semelhante àquela de Furiosa (garotinha afastada da mãe, passando pela guarda de sucessivos bandidos num deserto distópico até se emancipar), Borderlands chega a um resultado tão amador, em termos de efeitos visuais e construção da dinâmica de cena, que nos mostra como a mise en scène pode transformar ideias parecidas em algo grandioso ou fraquíssimo, dependendo da condução. O cinema nunca foi uma questão de o quê se mostra, mas de como se mostra.
Em determinados momentos, a infantilização da trama beira algo semelhante a Descendentes ou Sharkboy e Lavagirl. Em outros, as sequências com carros no deserto lembram objetos em miniatura numa maquete, filmados para parecerem maiores e dignos de crença. A artificialidade poderia ser assumida e exagerada, mas aqui, os criadores buscam disfarçar a falta de nexo e verossimilhança do universo futurista. Uma criatura gigantesca com tentáculos surge sabe-se lá de onde; gangues de mercenários voam em carros espaciais; Lilith dá alguns giros no ar antes de disparar. Ora, por quê? Os personagens irrompem de lugar nenhum, sem objetivos evidentes.
Portanto, como nos identificar com o sofrimento da mulher órfã que nunca havia demonstrado a falta da mãe, nem recebia qualquer sugestão de sua vida fora de Pandora? Quais traços de personalidade podem ser detectados no militar Roland (Kevin Hart), cujas habilidades supostamente especiais jamais são demonstradas? Que poder exerce de fato o magnata Atlas (Edgar Ramírez) para além de uma caricatura patética do mal? A trama anda em círculos, junto dos personagens que correm de um lado para o outro, sem avançar.
Grandes ficções científicas passadas em universos longínquos precisam de contextualização, de um senso de tempo e espaço fundamentais à imersão no contexto distinto. Mesmo com sua verborragia explicativa, produções como Duna atingiam tal gravidade de maneira excepcional. Já Borderlands cita por alto a existência de três partes de uma chave (como se sabe disso, desde quando?) para abrir um cofre poderoso (o que ele contém, desde quando o procuram?) e cuja geografia foi parcialmente descoberta (por quem, de qual maneira?).
O resultado se assemelha à sátira de um original desconhecido — imagine um humorista parodiando os traços do tio que ninguém mais conhece. Como rir do humor alheio, sem referências nem desenvolvimento? Ele prova, desta maneira, que não bastam o dinheiro, o elenco estrelado, a marca de sucesso dos games. As cores, a trilha sonora espertinha e o humor-da-quinta-série em estilo Deadpool não bastam para criar uma obra de apelo popular, com potencial para sequências. O terço final, ostentando revelações e efeitos visuais extravagantes, sela o destino de um filme incapaz de perceber que ele constitui a própria piada. Não rimos com os personagens, mas deles.
Verdade seja dita, aproximadamente cinco segundos da narrativa permitem vislumbrar algum potencial. Quando Lilith reencontra Tannis (Jamie Lee Curtis), ambas se encaram com uma expressão comovente, misto de surpresa e pesar, de alívio e remorso. A interação ocupa um plano curto, antes que Lilith retorne à função da “mulher forte”, e Tannis volte ao posto de oráculo educativo. Mas ali, naquele olhar entre duas atrizes experientes, percebe-se tudo o que Roth poderia ter feito em termos de construção de personagens, afetos, desejos, saudades, silêncios, ressentimentos. Borderlands poderia ter sido um belo filme.