Ainda Somos os Mesmos (2023)

O herói e os militares

título original (ano)
Ainda Somos os Mesmos (2023)
país
Brasil, Chile
gênero
Drama, História
duração
90 minutos
direção
Paulo Nascimento
elenco
Edson Celulari, Carol Castro, Lucas Zaffari, Nestor Guzzini, Nicola Siri, Carlos Falero, Jurema Reis, Juan Tellategui
visto em
Cinemas

Os letreiros iniciais nos lembram os horrores da ditadura chilena comandada por Pinochet. Evocam alguns dos crimes bárbaros contra a humanidade, em funcionamento análogo àquele de outros golpes na América Latina, incluindo no Brasil. Isso significa a tomada de poder pelos militares, com o apoio dos Estados Unidos, produzindo um governo de terror que suprime garantias democráticas sob pretexto de salvar o mundo de um comunismo imaginário. No final, uma nota de rodapé cinematográfica aponta para o golpe de janeiro de 2023, no Palácio dos Três Poderes, como a semente de um autoritarismo à espreita.

Ninguém duvida das boas intenções dos autores, tanto no aspecto de alerta político quanto de resgate histórico. O diretor Paulo Nascimento sempre demonstrou preocupação em veicular, através da ficção, mensagens pró-inclusão e em defesa da ecologia, por exemplo — vide o recente Chama a Bebel. Por isso, ele elege como protagonista da narrativa histórica um garoto que se arrisca inúmeras vezes para salvar outras pessoas em perigo enquanto espera pelo retorno de sua amada, capturada pelos militares. É muito fácil detectar as virtudes da figura tão idealista quanto idealizada.

No entanto, o projeto sofre de uma visão superficial dos meandros políticos. Nunca se cria espaço para descobrirmos a origem da ideologia de cada personagem — precisamos simplesmente acreditar em suas afirmações. Fernando (Edson Celulari) seria um dos empresários mais poderosos do Brasil, podendo insultar militares pessoalmente sem sofrer retaliações, entretanto, nunca o vemos trabalhar, nem compreendemos de onde surge tal status. O filho Gabriel (Lucas Zaffari) mantém uma crença inabalável na vitória democrática, embora nunca o vejamos ler, estudar, participar de qualquer grupo organizado. Ora, de que maneira formou suas crenças, sua visão de mundo? O rapaz apenas luta pela própria sobrevivência, entre cadáveres estranhamente maquiados e milicos intercambiáveis.

A iniciativa soa tão bem-intencionada quanto ingênua, sofrendo com sérios problemas de produção. Talvez sua principal falha decorra retrato maniqueísta de indivíduos perversos contra heróis puros e sonhadores.

Chegando à embaixada da Argentina no Chile, onde se situa parte considerável da trama, os problemas da verossimilhança persistem. Afirma-se que centenas de pessoas dormem pelos corredores, sofrem com problemas de saúde e racionam comida. Ora, nunca vemos esta organização no dia a dia, nem acompanhamos a obtenção dos alimentos no local cercado por militares sanguinários. Os ocupantes jamais discutem entre si, exceto para resolver problemas tipicamente novelescos: existe uma mulher grávida, prestes a dar à luz durante o clímax. Adivinha quem será o jovem corajoso a realizar o parto?

Neste mosaico, os personagens agem como caricaturas involuntariamente cômicas da brutalidade ou da condição de vítimas. Clara (Carol Castro) manifesta problemas de saúde mental após a morte do companheiro, então se apega a uma cadeira de forma maníaca. A atriz se dedica com convicção ao papel, e certamente possui talento de sobra para atribuir nuances à composição, mas o texto não ajuda. O roteiro a enxerga, sobretudo, enquanto “louca”. Para os militares que vigiam a embaixada, basta gritar “cigarro!” para se distraírem e ignorarem fugas nada discretas, a poucos metros de sua presença. 

Trata-se de questões de mise en scène, de fotografia e montagem. Muitas composições se mostram desajeitadas, diluindo o peso de um projeto tão solene. Frequentemente, a câmera parece não ter espaço para filmar como deseja (a conversa com a namorada no banheiro, o diálogo na escada). Na tentativa de imprimir dinamismo, a direção desloca os personagens aleatoriamente da parte interna da embaixada à escadaria frontal, sem justificativa para o vai e vem. Enquanto isso, desconhecemos a geografia deste espaço fundamental à trama. Nem a presença de um sujeito enfermo no sótão motiva uma exploração do local e de seus mecanismos internos.

Algo semelhante pode ser dito dos flashbacks dessaturados, pontuando os anos no passado sem provocar uma sensação de causa e consequência, nem aprofundar a situação de Gabriel. Ainda piores são as escolhas sonoras, a exemplo da trilha sonora redundante (explicando ao espectador quando chorar e quanto temer, como se ele não pudesse deduzi-lo sozinho). O que dizer então dos efeitos de surpresa, cada vez que um militar dispara uma frase ameaçadora? O “paaaannn!” alto na banda sonora se assemelha ao gancho para o desfecho de um capítulo de telenovela (mais uma vez, o horizonte dramatúrgico principal da obra). Fãs de Avenida Brasil devem esperar um congelamento da imagem e conversão ao preto e branco diante dos efeitos tragicômicos da pós-produção.

Por fim, a iniciativa soa tão bem-intencionada quanto ingênua, sofrendo com sérios problemas de produção. Talvez sua principal falha decorra retrato maniqueísta do bem contra o mal, de indivíduos perversos contra heróis puros e sonhadores. A redução da política ao aspecto moral esvazia a dimensão da coletividade. Não se discute de fato a perseguição aos estrangeiros, a estratégia de criminalização da diferença, a percepção equivocada (voluntariamente) do comunismo e da esquerda, as ferramentas de tortura, de manipulação da mídia e da opinião pública, ou ainda o apoio de potências estrangeiras. 

Mesmo entre os residentes temporários da embaixada, existem os bons (Gabriel, o próprio embaixador) e os maus (os dois sujeitos traidores, que desejam entregar um dos seus aos militares). Tamanha redução da complexidade política não ajuda a entender o golpe de janeiro no Brasil, a ascensão do bolsonarismo, nem a ameaça constante de novos ditadores, conforme pretende a produção. Ela apenas aponta à existência de indivíduos perversos que tentam atacar a nós, os puros e defensores do bem. Até a versão anêmica da canção da Elis Regina, no final, atenua este grito de alerta. Para um filme de vocação tão voraz e combativa, a representação do mundo soa pálida até demais.

Ainda Somos os Mesmos (2023)
4
Nota 4/10

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