Sofia Foi (2023)

Matéria de sonho

título original (ano)
Sofia Foi (2023)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
67 minutos
direção
Pedro Geraldo
elenco
Sofia Tomic, Heloísa Ribeiro, Sofia Carvalheira, Paulo Tadashi, Jorge Neto, Guilherme Françoso
visto em
27ª Mostra de Cinema de Tiradentes (2024)

O título deste filme parece muito certo de suas ações: Sofia foi. Por um lado, esta segurança se justifica: a jovem protagonista está de fato em contínuo movimento, entre os prédios da USP e os terrenos vizinhos, entre um apartamento e o matagal no terreno anexo. Na primeira imagem, ela caminha pela rua, sendo flagrada pela câmera à distância. Depois, atravessa buraco nos muros, salta cercas, esconde-se pelos cantos, atravessa saguões vazios da universidade. 

Por outro lado, embora se desloque sem parar, a heroína não tem para onde ir. O roteiro se recusa a justificar este abandono (teria sido expulsa de casa?), porém reforça o fato que a estudante nem sequer tenha onde pernoitar. Logo, a andança sem desespero e urgência, mas também desprovida de objetivos precisos, resulta numa deambulação retórica, um ato de partir pelo simples imperativo de se colocar em movimento. Sofia caminha porque está viva. De resto, não sabe por que estuda, não possui vínculos afetivos duradouros com ninguém. A jovem se assemelha a fantasma, pairando pela cidade.

O longa-metragem inteiro sustenta a aparência de uma trama fantasma, majoritariamente noturna, silenciosa e solitária. As raras conversas possuem curta duração e se limitam às pequenas interações cotidianas para passar o tempo, driblar os incômodos tempos vazios. “A universidade é muito doida”, afirma. E quem diria o contrário? Os principais amigos se limitam a vozes no telefone. As namoradas existem somente na memória. O mundo real, de interações palpáveis, encontra-se no passado ou na imaginação. 

É tão fascinante quanto perturbador passar um longa-metragem inteiro colado a uma figura sem conhecê-la de verdade.

A janela da imagem e a opção pelos close-ups reforçam esta impressão. Devido ao formato da tela mais próximo do quadrado, a sociedade ao redor de Sofia se torna invisível e, talvez, desimportante — afinal, o rosto emudecido ocupa o quadro inteiro. Na hora do beijo com uma garota, enxergamos apenas fragmentos de nariz, lábio, partes de um olho. Tanto nos enquadramentos quanto na vida de Sofia, não existem pessoas ao lado. 

O imaginário da rejeição e da marginalidade é representado pela multiplicidade de espaços nos quais ela nem sequer é notada, ou recebe um aceno rápido dos demais. Neste sentido, a ação violenta da cena inicial desperta questionamentos: aquilo realmente ocorreu? Seria um delírio? Aconteceu antes ou depois dos dias passados na universidade, fazendo tatuagens nos amigos e dormindo pelo chão? Em que momento se desenvolveu o romance traumático?

A temporalidade se bifurca e se dispersa. O cineasta Pedro Geraldo trata todas as emoções, sentimentos e gestos com igual importância. Logo, evita separações estéticas para distinguir os fatos e o sonho, o real e o passado. Caberá ao espectador traçar uma linha temporal das situações narradas, caso sinta a necessidade para tal. Sofia se converte num gato de Schrödinger, ao mesmo tempo, viva e morta, dentro e fora da caixa. Sofia foi, mas também ficou; Sofia decidiu ocupar o campus, porém se encontra igualmente à beira do lago. Sofia foi, está sendo, e talvez ainda venha a ser.

No papel principal, Sofia Tomic mergulha neste tipo de construção cada vez mais comum no cinema autoral contemporâneo (e, em consequência, de baixo orçamento). Ela oferece um misto indissociável de si própria com a personagem fictícia, e nunca atua no sentido clássico de composição e psicologização. Deixa que as circunstâncias ao redor insinuem o necessário, confiando no espectador para preencher as inúmeras lacunas que restam. É tão fascinante quanto perturbador passar um longa-metragem inteiro colado a uma figura sem conhecê-la de verdade. Somos convidados a decifrá-la, ou talvez simplesmente aceitá-la pelo mistério que representa. E por que precisaríamos conhecer as pessoas para nutrir algum afeto por elas? Todos os seres humanos não seriam intrinsecamente dignos de apreciação?

De resto, a estética permanece doce, terna, lânguida. Para ilustrar um cenário de violências sistêmicas consideráveis, o diretor (também diretor de fotografia) opta por um império do devaneio suspenso, do fim de festa, da lembrança incompleta de uma memória afetiva. Sofia Foi remete os resquícios de um sonho marcante logo após acordarmos. As peças estão presentes, mas nem tudo se encaixa. Faltam causas e consequência, faltam o antes e o depois. Foi forte, embora não se saiba ao certo o que ocorreu. 

O caráter onírico permite à obra impregnar o espectador em sua pequena estranheza, nada chamativa ou vaidosa. Geraldo evita os planos extravagantes, o grande clímax, a metáfora onde os sentidos se esclareçam e as pontas se atem. A narrativa voluntariamente monótona termina exatamente onde começou: com os mesmos recursos e (poucas) certezas a respeito dos significados construídos em cada plano. 

Talvez seja justamente a paixão pelas sombras, em oposição à facilidade do esclarecimento, que nos encante. Ao invés de se nutrir carinho e interesse por Sofia apesar de não a conhecermos bem, podemos apreciá-la precisamente por não se converter numa especificidade, num estudo de caso. A heroína constitui uma evocação ampla e deliberadamente vaga de marginalidade queer nos espaços urbanos brasileiros do século XXI.

Sofia Foi (2023)
7
Nota 7/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.