Carropasajero (2024)

Len-ta-men-te

título original (ano)
Carropasajero (2024)
país
Colômbia, Alemanha
linguagem
Experimental
duração
103 minutos
direção
Juan Pablo Polanco Carranza, Cesar Alejandro Jaimes
elenco
Maria Eugenia Fince Epinayu, Josefa Fince Epinayu, Luis Alberto Fince Epinayu, Isabel Fince Epinayu
visto em
18º CineBH (2024)

As vozes populares que se insurgem contra os “filmes difíceis” costumam recorrer a estereótipos risíveis do hermetismo. Questionam o prazer que cinéfilos prepotentes manifestariam diante de filmes iranianos em preto e branco, ou daquelas obras “onde nada acontece”, povoadas pessoas admirando o horizonte, em silêncio, durante obras. Ridicularizam as repetições, a poesia composta pelas paisagens áridas de alguma cultura distante. Assim, descrevem um universo que lhes parece estrangeiro, desprovido de afeto, e avesso ao valor de entretenimento que estimam inerente aos bons filmes.

Trata-se de clichês desgastados, é claro. Não seria útil, nem eficaz, nos alongar quanto à evidência de tal caricatura. No entanto, em raríssimas oportunidades, chegam aos festivais de cinema algumas obras que se assemelham bastante ao imaginário coletivo do “filme difícil”. São aqueles projetos cujo prazer dos criadores parece residir justamente na dilatação excessiva do tempo, na rarefação dos conflitos e interações humanas, e numa recusa da produção de sentido típica das estreias em circuito comercial. Quanto mais inóspito for este território, maior aparenta ser a coragem de seus criadores em organizar o espaço-tempo de tal maneira. O intrincamento se torna meio e finalidade.

Carropasajero constitui um protótipo quase paródico deste tipo de obras. Os diretores Juan Pablo Polanco Carranza e Cesar Alejandro Jaimes dedicam pelo menos uma dezena de cenas ao rosto de uma mulher de La Guajira, ocupando quase a integralidade da tela. Ela se encontra em silêncio durante longos minutos, ou acompanha narrações vaporosas e sussurrantes, em off. As vozes trazem frases do tipo: “No final, tudo não passa de uma miragem”, “Os cactos são almas que me seguem” e “Por que você não me acordou quando a minha alma estava indo embora?”.

O espectador nunca conhece de fato os indivíduos mencionados pela história, sua origem, suas ambições, seus traumas, sua luta. Os diretores terminam por fazer uma obra apesar do povo indígena, e não sobre eles, com eles, ou para eles. 

Em outros instantes, a mesma personagem encosta as mãos em uma parede, em tom solene (vide imagem em destaque acima), ou se deita na terra árida em posição fetal. Cada uma destas sequências retorna uma, duas, três, cinco vezes. Os planos das mãos dela, alisando cada palma e dedo, repetem-se ao limite da sátira, ou de um estranho fetiche dos autores por esta parte específica da anatomia. Os diretores provavelmente se inspiram na estética de Pedro Costa e sua Vitalina Varela, oferecendo, no entanto, um refinamento muito distante dos trabalhos do português. Resta um desejo de elegância, uma vaidade transbordando em cada gesto, que termina por chamar mais atenção aos autores do que à protagonista indígena.

Assim, o massacre evocado por ela, que teria vitimizado seus familiares, limita-se a mera sugestão poética, longínqua e desprovida de contextualização social, histórica ou política. A mulher Wayúu sonha em chegar à Baía Portete, embora ignoremos a importância deste local. Desconhecemos as circunstâncias do crime, a origem do exílio e da imigração, ou ainda as formas de luta encontradas pelos sobreviventes. Para Carranza e Jaimes, os indígenas representam sobretudo matérias de imagem, modelos para dispor no canto específico do enquadramento, sob uma luz estudada. Suas vivências possuem papel secundário.

Mesmo a opção pelas composições lentíssimas e repetidas, tais quais um mantra, poderiam ser contestadas. É muito conveniente, aos criadores brancos, representar a alteridade com tamanho grau de exotismo, como se os povos originários fossem mais “simples” em suas vidas e práticas, menos elaborados em sentimentos e história. A impressão de que teriam rotinas lentas, monótonas e desprovidas de especificidades culturais, também transparece o paternalismo e condescendência dos diretores. Este olhar vai na contramão daquele encontrado em tantas obras recentes produzidas e dirigidas por cineastas indígenas.

“Quantos choros caíram sobre você?”, pergunta, em off, um homem diante da árvore encontrada em meio aos escombros de sua antiga casa. Na sala de cinema, algumas pessoas riam de desconforto diante de tal construção poética, certamente muito bem-intencionada, ainda que exageradamente mística, etérea, desconectada do real. Em se tratando da pretensa representação de um massacre, a predominância de uma “beleza das paisagens” em relação a qualquer metáfora para a seriedade dos fatos traduz a impressão de desrespeito. Seria algo semelhante a — guardadas as proporções — representar o massacre da Candelária filmando durante incontáveis minutos uma florzinha brotando no cimento de alguma rua próxima.

Ao final, restam duas formas de travessia completamente diferentes: uma teria sido aquela, muito concreta e dolorida, da protagonista e do povo Wayúu. Outra reside junto ao espectador, que vivencia mais de 100 minutos de performance poética, e termina a experiência sem conhecer de fato os indivíduos mencionados pela história, sua origem, suas ambições, seus traumas, sua luta. Os diretores terminam por fazer uma obra apesar do povo indígena, e não sobre eles, com eles, ou para eles. 

Os povos indígenas, nesta narrativa, poderiam ser qualquer outro grupo social, de histórias distintas e passados radicalmente diferentes, contanto que brilhassem de maneira etnograficamente interessante em frente das câmeras. Trocariam de lugar com qualquer indivíduo capaz de se expressar em tom meditativo, manifestando o rosto sofrido que se espera de comunidades desconhecidas e pauperizadas. Aqui, o dispositivo cinematográfico não busca se adequar ao material humano. Pelo contrário, é o humano que precisa corresponder às vontades prévias de uma soberba autoral.

Carropasajero (2024)
2
Nota 2/10

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