Pasárgada (2024)

Natureza em êxtase

título original (ano)
Pasárgada (2024)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
90 minutos
direção
Dira Paes
elenco
Dira Paes, Humberto Carrão, Cássia Kis, Peter Ketnath, Ilson Gonçalves
visto em

Pasárgada começa com diversas imagens de pássaros, e termina com o horizonte sobre um desfiladeiro. Entre estas duas pontas, passa a maioria da narrativa perambulando pela Mata Atlântica, em trilhas que atravessam os riachos, serpenteiam as árvores, admiram as pedras e o céu. O local será filmado de dentro das águas, na terra e nos ares, por meio de drones; de dia e de noite; tanto de maneira próxima quanto distanciada. A natureza domina a integralidade da trama — mesmo o interior do chalé ocupado por Irene (Dira Paes) aponta para a vizinhança do verde lá fora.

Em seu primeiro longa-metragem como diretora, Paes busca uma maneira de engrandecer a região. Primeiro, opta pelo formato bastante horizontal, em scope, junto ao diretor de fotografia Pablo Baião. Segundo, transforma a heroína numa ornitóloga, em busca de pássaros raros que serão vendidos a magnatas na Arábia Saudita. Ela, grande especialista na área, seria capaz de identificar espécies consideradas extintas, e apreendê-las mediante pedido de um chefe estrangeiro. Irene ama a natureza, e possui certo orgulho de seus conhecimentos, porém adquire autonomia financeira graças ao tráfico de aves silvestres.

O roteiro deixa este aspecto adormecido, em segundo plano, para acendê-lo de fato apenas nos minutos finais. A heroína jamais demonstra nenhuma forma de arrependimento ou conflito moral por suas ações. Pelo contrário, maravilha-se diante dos pássaros como se fosse uma turista endinheirada, passeando mata adentro pelo bel-prazer. Ela é acompanhada, alternadamente, por dois mateiros gentis, profundos conhecedores da região: o experiente Ciça (Ilson Gonçalves), e seu pupilo, Manuel (Humberto Carrão). A maioria das sequências envolve instantes de amizade e companheirismo da mulher com estes companheiros.

Uma obra pequena, em diversos sentidos: são poucos conflitos, poucas cenas, poucos personagens. Pasárgada se assemelha a um aperitivo para filmes mais ambiciosos que Dia Paes pode vir a contar.

A noção de prazer adquire contornos curiosos. Dirigindo a si própria, Dira Paes faz da protagonista uma mulher propensa às expressões de deleite físico, emocional e estético. Ela geme conforme experimenta as águas do riacho, em seguida, emite outros gemidos ao experimentar um chá com cogumelos. Depois, dispara sons de gozo ao escutar uma bela música, além de mais alguns quando experimenta o calor de uma fogueira. A protagonista se converte numa figura permeável à natureza, porosa aos estímulos adjacentes. Há um evidente caráter erótico nesse contato com a mata, algo que curiosamente nunca se estende ao contato com os homens. 

Devido a esta sensação pessoal de satisfação, é difícil compreender a relação entre Irene e os crimes que ajuda a cometer. Em certa medida, ela aparenta não entender o destino reservado aos pássaros que ajuda a capturar. O espectador também precisa acreditar nestes gestos jamais representados em imagens — nunca testemunhamos Irene praticando nenhuma das ações de que é acusada. Mesmo assim, no desfecho, uma súbita consciência toma conta desta figura, quando o suspense se intromete na narrativa. A mulher carrega certo mistério, menos pela astúcia de texto do que pela incoerência de suas atitudes.

Parte desta inconsistência se deve às estratégias do filme para driblar o orçamento limitado e a dificuldade de ter mais atores em cena, em contexto de pandemia de Covid-19. Por isso, Cássia Kis e Peter Ketnath aparecem apenas via Zoom, oferecendo apoio, no caso da primeira, e cobrando resultados pelo trabalho, no caso do segundo. Este último, convertido num vilão caricatural, transparece o cuidado insuficiente com a construção das figuras próximas da Irene — caso da filha adulta, cujo distanciamento jamais é trabalhado a contento pelo roteiro. Mesmo um acerto de contas, no final, desperta a impressão de que faltavam cenas, diálogos, ou planos para esclarecer as circunstâncias de uma violência.

A direção de fotografia tampouco a ajuda. A opção por diversos planos médios, na janela em scope, não permite nem que se percebam os detalhes da expressão no rosto dos atores, nem que se conheça de fato a mata ao redor. Ao restringir a profundidade de campo, a natureza se torna indistinta, como se os criadores pudessem ter filmado esta mata em qualquer outro lugar. A sequência inicial, com uma sucessão de pássaros, sofre com baixa qualidade da imagem (seria pelo uso de uma teleobjetiva, ou a imagem teria sido recortada?), sem falar nos desníveis de luz sobre o rosto e o corpo da protagonista.

Pelo menos, Pasárgada impressiona pelo trabalho sonoro. Para acreditarmos no trabalho desta ornitóloga que quase nunca encosta em pássaros, é preciso elaborar uma rica paisagem de animais, rios, galhos, vento, passos de homens, assobios distantes. O perigo, a sedução e os desejos passam essencialmente por aquilo que os ouvidos escutam. Na impossibilidade prática de filmar diversos embates (relacionados ao erotismo e da morte, em especial), o longa-metragem se esforça em sugeri-los através da banda sonora orquestrada por Antônio Grosso, Beto Ferraz e Toco Cerqueira.

Resta a impressão de uma obra pequena, em diversos sentidos: são poucos conflitos, poucas cenas, poucos personagens. A estratégia pode ser interessante para Dira Paes experimentar dentro de um formato novo, ainda que deixe em aberto seu potencial enquanto esteta e contadora de histórias. Ao invés de começar na radicalidade, ela prefere uma abordagem gradual, módica, modesta. A obra se assemelha a um exercício, um aperitivo para filmes mais ambiciosos que pode vir a contar — o que não necessariamente precisaria decorrer de orçamentos maiores. 

Para cada escolha desengonçada (a “ave” de asas vermelhas no final, o flashback ao pôr do sol, uma justificativa escrita no computador), outras nos fazem apostar na cineasta (a imagem dentro da picape conforme Irene se afasta, a direção fluida e orgânica de atores). O resultado sustenta uma impressão de work in progress, um primeiro corte apresentado de maneira descompromissada aos amigos, para escutar uma primeira reação. Permanece, assim, no estágio intermediário entre a humildade e a inexperiência. Parece a primeira peça de um quebra-cabeça cuja imagem se revelará somente nas obras seguintes.

Pasárgada (2024)
5
Nota 5/10

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